Tempos atrás, quando um prefeito queria fazer algo que custava dinheiro, bastava sacar do bolso um talão de cheques, assinar, ir ao banco e sacar o valor na boca do caixa. Em seguida, dirigia-se ao comércio local, comprava algo que necessitasse e pedia que o dono da bodega desse um recibo, escrito à mão, com os “dizeres” que ele ditava. Não existia ministério público e a fiscalização era reduzida a uns poucos vereadores que em muitos momentos acabavam precisando dos favores do prefeito. Ele consultava principalmente as “vozes da sua cabeça” e mais uns poucos que o rodeavam
e tentava pôr em prática a ideia que tinha em mente.
No momento atual, quando se pensa no desafio de governar o coletivo, esse tipo de “processo” é inconcebível. Ser presidente, senador, deputado, governador, prefeito, vereador ou exercer qualquer outro cargo público hoje – eletivo, efetivo ou comissionado – é completamente diferente do que foi sê-lo num passado recente. Quanto ao exemplo dos cheques, o Decreto Federal 6170/2007 passou a proibir o saque de verbas públicas na boca do caixa. Em relação à forma de decisão sobre a destinação de recursos, hoje, em que pese na prática o poder de interferência, há que se
discutir e votar o orçamento coletivamente, percorrendo, por exemplo, os caminhos do Plano Plurianual – PPA, lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e a Lei Orçamentária Anual – LOA, do Orçamento Geral do Estado – OGE, e do
Orçamento Geral da União – OGU.
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A gestão da máquina pública, das políticas públicas e dos interesses dos grupos sociais e políticos, internos e externos à administração, requerem um nível de conhecimento, sensibilidade e, por que não dizer, de traquejo, cada vez maior, diante da complexidade das demandas, dos problemas e dos processos burocráticos a serem enfrentados.
Governar um coletivo composto por vários centros de poder tem se tornado um desafio a que poucos são capazes de responder a contento. É necessário ter noção da pluralidade e do contexto em que cada questão a ser resolvida está inserida. É necessário conhecimento técnico e sensibilidade política, para entender o funcionamento da gestão, perceber as forças que interferem e como interferem nessa engrenagem, pois há várias camadas e instâncias de poder, que cada vez mais tendem a funcionar com autonomia e relativa independência. É preciso negociar e construir decisões mais
horizontalizadas, de maneira democrática, que verticalizadas, minimizando as chances de que os processos de decisão tangenciem para um lado mais hierárquico e autoritário.
No modelo de governança policêntrica, que marca as políticas no mundo contemporâneo, em regra o poder é compartilhado com diversas instâncias, que, na prática, configuram múltiplos centros de poder. Ou seja, há
parcelas de poder e responsabilidades que fluem por cada uma delas: quando se pensa na implementação das políticas públicas, que são a materialização das decisões políticas em favor ou desfavor do coletivo, existe uma sequência
de ações que são executadas e que passam pela conexão de estruturas administrativas que vão da presidência da República e seus ministérios, a conselhos, comissões, frentes parlamentares, governos, prefeituras e secretarias, dentre tantas outras.
Isso quando se consideram os atores institucionais internos à administração, pois governa-se também sob a influência do ministério público e do judiciário e há mais dois tipos de atores que interferem em toda a governança coletiva: os externos, como as entidades de classes empresariais, os sindicatos patronais e de trabalhadores, ONGs, o mercado financeiro, a
mídia falada, escrita, televisiva e digital, dentre outros. E os atores extra-institucionais como os movimentos sociais, fóruns e grupos de atingidos por decisões governamentais e políticas públicas que se reúnem para cobrar implementação de seus direitos ou minimização de prejuízos, por meio de protestos eventuais.
Toda essa multiplicidade de atores interage com base em correlação de forças e interesses, individuais ou coletivos, que resultam na definição das agendas públicas, nas prioridades desta agenda e naquilo que, dentro desse contexto, será efetivado em forma de decisão. Por isso é necessário cooperar, em vez de determinar; fazer junto, em vez de ordenar.
Mesmo sob o guarda-chuva democrático das instituições brasileiras, há muito poder que pode ser exercido pelo presidente de organizações, como o poder de pautar os assuntos prioritários, dentre centenas, a serem discutidos na ordem do dia e há também mecanismos regimentais que podem fazer com que tais dirigentes imprimam um rumo às discussões que resultam em decisões. Porém, não se pode desconsiderar que as estruturas institucionais formais, além de serem permeáveis à vontade dos seus líderes, também são influenciadas tanto pelo contexto de cada tema a ser colocado em pauta, como pelas pressões exercidas pelos grupos de interesses de cada área, ou seja, pelo potencial de agência, de ação humana junto à essas organizações.
É imprudente, improdutivo e desgastante tomar decisões de cima para baixo, em um gabinete fechado, ouvindo “vozes da minha cabeça”, por mais que haja “boas intensões”, sem ouvir no mínimo os grupos envolvidos que serão alvos das decisões e que poderão ser beneficiados ou prejudicados com o efeito da decisão tomada ou da política pública implantada.
O contexto importa, como importam a astúcia e perspicácia do líder que governará em ambientes favoráveis ou desfavoráveis, mas, que deliberando em conjunto com as forças envolvidas em cada processo de tomada de decisão, terá mais condições de minimizar resistências a essas decisões, por mais que estas talvez nunca agradem a todas as forças envolvidas. Decisões impostas de cima para baixo geram mais oposições, deserções e boicotes.
É prudente considerar tanto as regras quanto as práticas e narrativas na condução da gestão pública. Pode-se pensar nas regras como o ordenamento jurídico-constitucional e os regimentos, no campo formal, mas, também se deve considerar o informal em cada organização no setor público que são as práticas, nem sempre condizentes com as normas formais.
Governa-se com a ambiguidade de diferentes decisões judiciais com bases numa mesma lei, sobre uma mesma matéria, julgada de modo diferente por juízes diferentes.
Governa-se com as incertezas, com os riscos e oportunidades e, para lembrar Maquiavel, governa-se sob a influência do infortúnio ou da deusa da boa sorte que rodeiam constantemente a caneta do gestor. Governa-se com os recursos que se tem, e que, em geral, são escassos em relação às demandas. Uma visão realista de governança considera a realização do jogo político com as cartas que estão disponíveis. Por exemplo, o próximo presidente da república e os próximos governadores governarão com os membros do legislativo que forem eleitos juntamente com ele. Se o povo mandar para o legislativo freiras, anjos e demônios, será com eles que os futuros gestores governarão.
Governar é considerar os efeitos que recaem sobre o “povo”, como alvo das decisões tomadas pelos governantes. Neste cenário entram em campo as narrativas para tentar justificar ou minimizar os danos que muitas vezes recaem sobre a população insatisfeita, para tentar minimizar as insatisfações e tentar construir alguma aceitação. Uma narrativa bem construída e disseminada é capaz de levar um ser humano na condição de soldado a oferecer a sua própria vida em sacrifício numa guerra.
Cada área de governo tem sua peculiaridade e por isso não há uma fórmula única de se governar. Quando se pensa em educação, saúde, transportes, entre outros temas de políticas públicas, se deve pensar em contextos, atores, problemas, interesses, disputas e soluções diferentes para cada situação. Do mesmo modo, o desafio de governar o coletivo, é diferente do desafio de governar o privado. O Estado não é uma empresa privada: é um ente público. Governar o Estado é governar o interesse comum a todos. Governar o interesse público, choca com os interesses privados. Além disso, o tempo, os processos, as formas de decisão, a racionalidade e a lógica de funcionamento são de naturezas diferentes.
Por fim, os processos políticos de tomadas de decisão passam por diversos sistemas de engrenagens, que precisam ser lubrificadas com informações precisas, diálogo, acordos e adaptações; maleabilidade e horizontalidade sim; rigidez e verticalidade, não. Esse é o fazer cotidiano da política, na tentativa de viabilizar a arte e o desafio de governar o coletivo.
*Robson Carvalho é doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília e apresentador de programa de TV na Band-NE e TVT-SP
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