Tem um Brasil imenso deixado à margem das inúmeras análises veiculadas nos últimos dias sobre os resultados eleitorais. Um Brasil que não se empolgou nem com Dilma nem com Serra. Um Brasil que se dividiu em três no segundo turno: ou optando, com pragmatismo, mas sem entusiasmo, por um dos dois concorrentes, ou simplesmente lançando mão do direito de não votar em nenhum deles.
Em 1989, exatamente 35.089.998 de brasileiros garantiram a vitória de Fernando Collor na primeira eleição presidencial disputada pelo voto direto desde o fim da ditadura militar. Em 2010, 36,6 milhões votaram nulo, em branco ou se abstiveram de votar.
Parte do fenômeno se deve ao crescimento do eleitorado. Dilma Rousseff teve respeitáveis 55,7 milhões de votos. Serra, 43,7 milhões, que também não podem ser desprezados. Mas muitos desses votos, dados a ela ou a ele, foram bem menos convictos do que supõem petistas e tucanos. Um colega jornalista definiu o voto no último dia 31, na seção eleitoral, na base do cara ou coroa. Outro pediu à filha, de nove anos, que digitasse o número da sua preferência, 13 ou 45.
Ambos não viam grandes diferenças entre os candidatos do PT e do PSDB. Seja nos defeitos, seja nas qualidades. Ao longo da campanha eleitoral, estamparam-se incontáveis vezes opiniões semelhantes na mais democrática e mais ampla tribuna das eleições deste ano, a internet, onde mais de 70 milhões de brasileiros já marcam presença como usuários ativos. Muita gente desconfiou, e talvez continue desconfiando, de Dilma e do PT, mas também não engoliu a história do “candidato do bem” com que se pretendeu carimbar o passaporte de Serra para o Palácio do Planalto. É preciso ser muito desinformado para acreditar que os (sempre inaceitáveis) desvios éticos são um monopólio dos governos petistas, ou aceitar a torpe tentativa de pintar Dilma – que, ao contrário de Serra, não responde a nenhum processo judicial – como a personificação do mal.
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Mas, o que falam os analistas políticos a respeito desse Brasil que não cabe no azul tucano ou no vermelho petista reproduzidos nos mapas eleitorais publicados à exaustão desde o segundo turno? Praticamente nada. Numa eleição em que grande parcela dos cientistas políticos, jornalistas, articulistas, blogueiros e colunistas se converteram em fanáticos torcedores (de Dilma ou de Serra), os tais “analistas” parecem agora mais empenhados em chorar a derrota ou cantar a vitória de seus preferidos. Não têm olhos, portanto, para aquele Brasil que, entre outras coisas, preferiu curtir o feriadão do que avalizar qualquer dos confrontantes de uma campanha caracterizada pela falta de propostas sonantes e críveis.
Do lado da torcida oposicionista, há sandices para todos os gostos. Decretou-se, por exemplo, que não tem nenhum significado o fato de o país ter eleito, pela primeira vez, uma mulher para ocupar o mais alto cargo da nação. Uau, quanta sensibilidade para questões de gênero! Ou que o Brasil elegeu um “poste”, que ainda não demonstrou a que veio, por obra exclusiva da popularidade do presidente Lula. Pombas, pode alguém percorrer a trajetória pública de Dilma sem ter nenhuma virtude? E o que dizer das manifestações histéricas contra nordestinos, acusados no Twitter e em outros territórios da internet de impor à nação o atraso político? Vai ver, o progresso estava com quem disparava e-mails grosseiramente falsos pela internet contra a candidata petista.
PublicidadeO outro lado também tem produzido ridículas demonstrações de intolerância. Minoritária nos grandes veículos de comunicação, mas influente nos meios acadêmicos e na web, a torcida pró-Dilma prefere destilar seus ressentimentos – contra Serra, órgãos de imprensa, ou o que mais for – em vez de refletir sobre a construção de uma agenda nacional que contribua para o país, de fato, “seguir mudando”, como prometia a propaganda eleitoral. O escândalo na Casa Civil, que tirou o emprego de Erenice Guerra e a chance de Dilma ganhar a eleição no primeiro turno, deveria ser o bastante para os petistas compreenderem o quanto é profundo hoje na população o sentimento de repulsa contra a corrupção. O que se ouve da maioria deles, porém, é que isso é “discurso da direita”, é “coisa de udenista”. Como se o assalto aos recursos públicos não fosse a pior forma de apropriação privada de bens coletivos! Logo o PT, que trouxe o debate ético para o campo da esquerda! Ok, naquela época, a palavra “mensalão” não havia sido incorporada ao vocabulário político nacional.
Lula chegou a defender, no dia mesmo em que se definiu a disputa presidencial, a posse de todos os políticos barrados pela Lei da Ficha Limpa, afrontando simultaneamente o Poder Judiciário, titular único de tal decisão, e a opinião pública, que tem dado firme apoio a essa nova legislação, aliás sancionada sem vetos pelo próprio presidente.
No histórico pronunciamento que fez no último dia 31 (entre aqui para ver a íntegra), Dilma apontou caminhos que podem levar o seu governo a contemplar o Brasil de que falamos aqui. Um Brasil que, pensando bem, é muito maior que o PT ou o PSDB, isoladamente. Lembremos que 36,6 milhões de eleitores optaram no segundo turno pela abstenção ou pelos votos nulos e em branco. Na eleição para a Câmara dos Deputados deste ano, todos os candidatos petistas e tucanos, juntos, somaram pouco mais de 27,5 milhões de votos.
Sabe o que penso? É que toda essa gente, ou boa parte dela, não se seduziu pela conversa marqueteira – e frequentemente contraditória – de Serra e Dilma porque gostaria de ver um outro jeito de se fazer política.
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