André Neto *
Analisar e escrever sobre o posicionamento dos evangélicos brasileiros, suas reações e expectativas frente ao cenário eleitoral, têm-se constituído um exercício de humildade intelectual, pois, semanalmente, as notícias que circulam fazem desmoronar as ideias elaboradas há tanto tempo e que, de certa forma, construíram uma percepção de identidade religiosa baseada na separação orgânica entre Igreja e Estado. O bolsonarismo, como um parasita que suga e mata seu hospedeiro, está deformando a identidade cristã evangélica. A novidade aqui é que o hospedeiro se alegra em dar a sua vida em favor de quem o explora.
Nestes últimos dias, duas notícias circularam muito timidamente nos corredores dos templos evangélicos. A primeira foi sobre uma confusão ocorrida num culto da Congregação Cristã do Brasil (CCB) onde um policial de folga, membro da comunidade, atingiu com um tiro na perna um outro frequentador daquela igreja. Isto porque o baleado não concordava com a distribuição de material impresso condenando os eleitores de partidos de esquerda. Segundo as reportagens veiculadas, o ferido afirmava que a CCB não tinha a prática de fazer proselitismo político em suas reuniões. A segunda notícia foi sobre uma reunião dos batistas de São Paulo onde candidatos ligados ao bolsonarismo, especialmente Marcos Pontes, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, declararam seus nomes e números. Alguém, que não aparece no vídeo que circula nas redes sociais, protesta dizendo que aquilo não era apropriado. Constrangidos, mas inflexíveis, os dirigentes da reunião pediram que os convidados fossem mais sucintos.
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Duas denominações, historicamente marcadas pela blindagem dos seus púlpitos às campanhas políticas, demonstram a penetração do bolsonarismo corroendo suas identidades. Aqui e ali alguém protesta e lembra aos seus irmãos que a liberdade de consciência inclui as escolhas políticas. Suas vozes são abafadas por tiros ou são simplesmente ignoradas. Entre a fidelidade ao presidente e a comunhão com os seus irmãos de esquerda, elimina-se os irmãos e mantém-se a idolatria ao “mito”.
Há de se considerar que a relação do bolsonarismo com o movimento evangélico brasileiro não se deu por uma penetração ou adesão. O que é mais preocupante e triste é perceber que há a possibilidade de reconhecer o bolsonarismo como a emergência dos maus humores dos protestantes brasileiros, explosão dos sentimentos violentos e maldosos calados pelo ethos cristão. Talvez, há muito tempo, os evangélicos brasileiros tenham reprimido os seus desejos de morte, provavelmente oriundos de uma espiritualidade repressora e reacionária. Isso pode ser um caminho para tentar entender o que está acontecendo. Entender o bolsonarismo como religião poderia explicar como um povo que porta a mensagem cristã, que chega a ordenar o amor aos inimigos, pode performar um ato de violência contra um “irmão em Cristo”.
Os últimos apelos da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, beiram algumas práticas dos radicais fundamentalistas: proclamação de um jejum nacional e a declaração de uma guerra “santa”. Essa linguagem religiosa não combina com o Novo Testamento. A prática do jejum, nesta parte da Bíblia, é pessoal e voluntária, pois não sendo assim é sem efeito. Não há declaração de guerra contra os infiéis, pelo contrário, os cristãos sofrem perseguições instigados a perdoar os seus perseguidores.
PublicidadeHá a possibilidade de caracterizar o bolsonarismo como uma outra denominação religiosa, pseudo-cristã, conservadora quando conveniente, exclusivista e sofismática, com uma linguagem chula, portadora de argumentos rasos e inflexíveis. Seu clero é formado por obreiros que não “manejam bem a Palavra da verdade”, mas são hábeis portadores de armas de fogo. Eles parecem fiéis aos Deus que é Amor, vão para conferência dos “fiéis”, determinam o que é ser um autêntico crente a partir não do texto bíblico e sua prática, mas conforme o compromisso em estabelecer o reino do mito em toda a terra brasileira. O evangelho deles é o outro, condenado pelo Apóstolo Paulo como sendo parecido com o verdadeiro, mas sendo falso e produtor de morte. Os templos do bolsonarismo podem carregar nomes como Assembleia, Batista, Presbiteriana, Congregação, Universal, Mundial, Internacional, Pentecostal, Independente, mas poderiam ser reunidos sob a alcunha de Clube de Tiro. O bolsonarismo é uma outra religião.
* André Neto é pastor da Primeira Igreja Batista de Ubatã (BA). Foi ordenado em 2012, tendo sido antes pastor auxiliar na Igreja Batista da Pituba, em Salvador (BA), e pastor auxiliar na Igreja Batista da Avenida, em Feira de Santana (BA). Licenciado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (STBNE) e mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Além de pastor, é professor do Seminário Teológico Batista do Nordeste e bacharelando em Mídias e Tecnologias pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Ele pode ser contatado pelo e-mail: pr.andreneto@gmail.com ou pelo Instagram: @prandreneto. Texto publicado originalmente no Observatório Evangélico.
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