Quando se abre a porta do hospício, o porteiro deixa de ter importância e a prioridade é acalmar os ânimos dos pacientes que escaparam e colocá-los de volta na ala de internação.
Para poder explicar melhor o tamanho da gravidade do problema que estamos passando, o completo descontrole da situação e os reflexos futuros disso, vou me recordar de um livro que grande parte já teve acesso na época da escola, chamado Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. A maioria que já leu provavelmente teve acesso à versão original lançada em 1970. Em versão recente, Bach resolveu publicar a íntegra do livro, adicionando o quarto capítulo que eu vou explicar adiante. Antes, vamos falar dos três primeiros capítulos e mesmo quem não leu o livro será capaz de entender a intenção do autor e poderemos traçar um paralelo com o que está acontecendo no país.
No primeiro capítulo, uma gaivota chamada Fernão Capelo chega à conclusão de que voar não deveria ser apenas uma forma de se locomover ou disputar restos de comidas dispensadas por pescadores. Seu inconformismo com a limitação imposta ao comportamento das gaivotas faz com que busque realizar coisas que nenhuma outra havia feito, enquanto vive o conflito entre seguir o bando e pertencer ao grupo ou tentar romper barreiras e voar mais rápido, melhor e fazer acrobacias que o permitia buscar alimento em profundidade maior, tendo acesso a peixes melhores. Em determinado momento o grupo, muito tradicional, expulsa Fernão e ele se torna um exilado, sem possibilidade de retorno. Em seu exílio, ele conhece outras duas gaivotas que, assim como ele, buscavam mais e juntos passam a realizar voos que jamais foram imaginados.
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No segundo capítulo, Fernão transcende a outra sociedade, mais evoluída e formada por gaivotas que também tinham como obsessão realizar coisas que jamais foram realizadas. A relação entre os alunos e professores é quase sagrada, chegando ao ponto de ser feito um paralelo com a divindade. Em um dos trechos, o autor destaca: “Você tem de compreender que uma gaivota é uma ilimitada ideia de liberdade, uma imagem da Grande Gaivota”. Fernão, então, percebe o contraste entre a antiga comunidade que ele vivia, que era completamente coercitiva.
Chegando ao terceiro capítulo, que era o último na versão original do livro, o destaque vai para a frase do professor de voo mais antigo desse bando, que diz “continuar trabalhando para amar”. Nessa parte Fernão entende que o processo de evolução está na capacidade de perdoar e o progresso está concentrado na arte de ensinar outros para que possam ver o mundo de uma forma diferente. Assim ele retorna ao plano, reaparece no seu bando e passa a ensinar, depois de superar inúmeras barreiras. Junto com seus discípulos mais próximos, começa a mostrar o caminho de “voar por prazer”, de formas diferentes e criativas e não apenas para cumprir uma metodologia ultrapassada, que antes o deixava insatisfeito, triste e inconformado.
Como eu disse, uma nova edição foi lançada, levando em conta o século 21 e suas particularidades. Segundo o autor, o capítulo estava pronto e ele havia optado por não publicar, com medo da mensagem principal se perder. No entanto, talvez ele não soubesse do crescimento de movimentos políticos e religiosos em todo o mundo e o peso desse novo capítulo na realidade que estamos passando. Sei que a maioria dos leitores teve a oportunidade de ler esse livro na infância e, naquela época, esse último capítulo ainda não estava disponível e, mesmo eu descrevendo adiante o que acontece, deixo o convite para que leiam a nova edição do livro.
PublicidadeNo quarto capítulo, lançado posteriormente, Fernão Capelo Gaivota e seus discípulos mais próximos morrem. Mas isso acontece depois de ele ter mudado toda a realidade das gaivotas. Elas passaram a sentir prazer em voar, buscar o voo para além de algo útil apenas à sobrevivência. Novos caminhos foram encontrados, desafios foram superados, novas formas de obter alimento e se comportar no dia a dia.
A semente do trabalho de Fernão havia sido plantada e as gaivotas tinham um caminho a seguir. No entanto, com o passar dos anos, as gaivotas passaram a prestar homenagens daquilo que eles acreditavam que havia sido Fernão. Fizeram uma estátua e deixavam-lhe oferendas. Depois disso, quase que em um altar, passaram a fazer orações, pedidos e iniciaram a total distorção dos ensinamentos de Fernão. Ao invés de executar o que ele havia ensinado, de treinar incansavelmente para melhorar as manobras de voo, inovar e romper barreiras impostas pelos outros, as gaivotas se limitaram a prestar homenagens e pedir para Fernão que as ajudassem a realizar os feitos que dependiam exclusivamente de seus esforços. As falas deixadas pelo mestre eram tiradas do contexto, adaptadas para caberem exatamente dentro daquilo que elas queriam e as gaivotas deixaram de voar como voavam antes. Não existia mais criatividade e liberdade, apenas teorias distorcidas da realidade e dos ensinamentos. Nada, absolutamente nada, do que Fernão havia ensinado era aplicado. Eis que surge uma jovem gaivota que passa a questionar tudo que falavam sobre Fernão e começa a fazer exatamente ao contrário do que as demais gaivotas faziam, iniciando mais uma fase de rompimento de barreiras, assim como Fernão havia feito no passado.
Minha sugestão é que aqueles que ainda não leram esse pequeno livro, que pode ser facilmente consumido em uma tarde, façam a leitura. Aqueles que já leram, podem repetir a leitura, com o acréscimo do quarto capítulo. Mais do que isso, sugiro que coloquem na cabeceira da cama de seus filhos, porque é um livro encorajador e que também mostra o risco de seguirmos algo sem questionar.
Dito isso, quando vejo o comportamento dos últimos quatro anos, somados às eleições e as recentes manifestações de parte da população após a apresentação do resultado das apurações, tomo licença para fazer um paralelo com o livro Fernão Capelo Gaivota.
No livro, fica clara a divisão da população das gaivotas em dois grupos. O primeiro, minoritário, é composto por gaivotas que buscam romper as barreiras por inconformismo da realidade que vivem; no segundo grupo, a maioria massacrante é formada por aves que buscam seguir, à primeira vista, a tradição do ancião e depois passam a seguir Fernão Capelo e as mudanças propostas por ele e no fim, criam uma ideologia distorcida baseada em suas próprias cabeças e conveniência e a seguem de forma que se assemelha a um culto.
Assim está o cenário político nestes últimos quatro anos. Num primeiro momento, temos a ruptura com o conformismo da vida como estava e a busca de novos horizontes; pequenos grupos iniciam um questionamento que foi tomando proporções gigantescas e, então, paralisaram o país. Na busca por eleger um interlocutor dessa quebra de paradigmas, o Brasil se escorou no discurso de Bolsonaro. Ele, de forma hábil, criou narrativas audíveis ao público que queria cativar e aliado a isso, o absurdo atentado da facada coroou, apesar de trágico, a construção do arquétipo do herói. E brasileiro adora um herói.
Durante o governo, com a insustentabilidade da manutenção do discurso anticorrupção, temas menos importantes e mais polêmicos encobriram a realidade.
Simultaneamente, uma realidade paralela foi se desenhando: teorias da conspiração sobre o sistema, complôs de outros países, supostas fraudes no sistema eleitoral, revolta contra o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, a impossibilidade de governar, teocracia, idiocracia e histórias criadas de luta entre o bem o mal com as mais absurdas colocações tomaram conta das redes em uma distribuição massiva de fake news.
A discussão com os grupos mais extremistas se tornou impossível. Nessa hora, Mark Twain, humorista americano, tem razão ao dizer “Nunca discuta com um idiota. Ele te arrasta ao nível dele e te vence em experiência”. Resumindo, é impossível discutir com algo completamente desarrazoado. Nada na conversa faz sentido e você fica sem saber até como agir numa situação dessas.
Agora, traçando um paralelo do período eleitoral, especialmente após a apuração com o resultado dando a vitória a Lula – com o novo e quarto capítulo do livro que conta a história de Fernão Capelo Gaivota -, temos aqui a mais dura realidade retratada pelo autor Richard Bach: a capacidade da sociedade de distorcer a realidade e criar verdadeiras seitas. Nesse ponto, a criação fica maior que o próprio criador e é justamente esse o risco que enfrentamos. O bolsonarismo é maior que o próprio Bolsonaro e nem ele, caso quisesse, conseguiria controlar o que está acontecendo.
Até o final da semana passada, eu tive estômago para ficar em grupos bolsonaristas. Não consegui mais. Apesar de a tendência normal ser a perda da força nos próximos dias, ainda teremos momentos críticos em que essas ações e discursos estarão acentuados, como a posse do novo presidente, que não será fácil, ou os primeiros números do novo governo, que tendem a não ser tão positivos, tendo em vista o orçamento aprovado para 2023 e uma série de fatores externos. Mas, o mais preocupante, é a possibilidade de declarações de Bolsonaro que ora está em silêncio, ora faz falas que deixam margem para a criativa interpretação dos eleitores e, em outras ocasiões, adota o discurso mais agressivo.
Em cada comportamento, reações das mais variadas aparecem. Em grupos que participei, recebi coisas completamente insanas, mas que deixam claras mais uma vez que o bolsonarismo é maior que Bolsonaro. No período silencioso de mais de 36 horas antes do pronunciamento, áudios relatavam que o futuro ex-presidente estaria preso, sendo refém a mando dos ministros do STF. Ao aparecer na coletiva, com sorriso no rosto, em outros grupos, depoimentos de pessoas se identificando como próximas do governo, dizendo que aquele ar de tranquilidade era justamente para mostrar que o “Capitão tem um plano”. Ao descrever a derrota nas urnas, outro áudio dizia que tudo isso era parte de um plano de Bolsonaro que sendo um ótimo estrategista de guerra, diria que tudo ocorreu como planejado e que, assim que se consolidassem as provas, na posse do novo presidente, ele abriria a “farsa” das eleições e mandaria prender todos os que manipularam as eleições. Um dos mais preocupantes trata de uma convocação em que os eleitores do presidente alegam que ele está cansado e lutou o quanto pôde. Nesse caso caberia ao povo continuar aquilo que ele havia começado. Conseguem perceber a gravidade?
Assim como as boas intenções de Fernão Capelo Gaivota se tornam uma seita, com adorações, discursos distorcidos e teorias relativistas, o Brasil se vê diante de adoradores das teorias criadas durantes os últimos quatro anos. Pessoas com os mais variados níveis e tipos de psicopatias tomaram voz e a pauta que eles acreditam estar defendendo se tornou maior que o próprio nome que a levantou inicialmente. Imaginem o improvável: o país entrando em colapso com confrontos de todas as espécies e Bolsonaro, arrependido do seu comportamento, resolve pegar um microfone e dizer: “Queridos eleitores, reconheço o processo eleitoral. Não há provas de manipulação nas eleições. É tempo de pacificar e peço a todos que se acalmem e se unam num Brasil só, conforme Deus nos ensinou, com paz e união”. Pergunto: qual a chance dos eleitores de Bolsonaro seguirem esse conselho? Nenhuma. No mínimo, vão dizer que o presidente foi dopado ou que ele está com algum parente sendo refém e por isso que ele fez a declaração, ainda reforçando que agora é a hora de aumentar a mobilização e pedir intervenção.
A triste realidade é que esse movimento, perigoso e sem limites, ainda nos acompanhará por décadas e enterrar o nome de Bolsonaro, por mais necessário que seja, não acabará de vez com o mal que ele criou. Do lado de cá, daqueles que não acreditam nas teorias conspiratórias e não sofrem de mania de perseguição, seguimos aprendendo e reaprendendo a combater essa onda que não perdeu a força nem mesmo com a derrota.
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