O Censo de 2022 indicou que a população brasileira é composta de 104,5 milhões de mulheres, ante 98,5 milhões de homens. Elas correspondem a 51,5% dos residentes do Brasil e, mesmo assim, enfrentam dificuldade histórica na representatividade política. Das 26 capitais estaduais, oito não têm nenhuma candidata à prefeitura. São elas: Florianópolis (SC), Teresina (PI), Fortaleza (CE), João Pessoa (PB), Cuiabá (MT), Manaus (AM) e Rio Branco (AC). Entre os 171 candidatos a prefeito nas capitais, só 36 (21%) são mulheres.
Além das poucas opções de mulheres nas disputas, aquelas que concorrem recebem montantes de recursos muito inferiores aos dos homens. A cientista política Hannah Maruci, diretora e cofundadora da organização A Tenda das Candidatas, que acompanha a representatividade feminina nas eleições, pontua que o cenário não surpreende. “Essa desigualdade já é muito esperada. O que está por trás disso é o que está por trás de toda a sub-representação de gênero na política, que é a falta de investimento político, a falta de investimento financeiro em candidaturas de mulheres”.
A cientista política avalia que, dentro dos partidos, a escolha pelo lançamento de candidaturas femininas às prefeituras se torna mais complicada se comparada às voltadas para o Legislativo.
Leia também
“Quando a gente fala de candidaturas majoritárias, estamos falando de uma peneira muito mais rígida do que a peneira do Legislativo, que faz com que você tenha menos candidatas mulheres, porque o partido vai escolher uma só por capital. Então, o partido vai contar com competitividade e é claro que, historicamente, os homens têm maior competitividade porque eles têm ocupado o espaço político, os lugares de poder, e recebido mais recursos por séculos. Essa disparidade é extremamente esperada”, afirma ela.
Como o Congresso em Foco, em parceria com a plataforma 72horas, mostrou na última semana, homens têm maior domínio sobre os recursos destinados ao financiamento de campanhas. Dados compilados pela plataforma até o início de sexta-feira (20), indicam que candidaturas masculinas concentram 72,96%, ou R$ 3.454.048.514, das três fontes de recursos analisadas, a partir do banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), conhecido também como fundo eleitoral ou fundão, que tem a previsão de R$ 4,9 bilhões ao todo para o pleito deste ano; o fundo partidário, que é composto de valores repassados aos partidos, estimado este ano em R$ 1,1 bilhão; e “outros”, rubrica que compreende a doação direta, o financiamento coletivo e o autofinanciamento.
Publicidade“A gente tem aí uma média nacional de 35% de mulheres candidatas (nas eleições deste ano, considerando candidatas à prefeita e vereadoras) e ainda um agravante de que nem com esse percentual baixa elas tiveram o mesmo financiamento proporcional dos homens”, observa Hannah.
O TSE acordou com os partidos que os repasses de recursos do Fundo eleitoral às contas específicas destinadas a candidaturas de mulheres, negros e negras deveriam ocorrer até o dia 30 de agosto. Além disso, foi alinhado que a distribuição às contas individuais dos candidatos deveria ser efetuada até 8 de setembro. Até o momento, no entanto, não se atingiu o percentual de 30% dos recursos nem para candidaturas negras, nem para candidaturas de mulheres. Segundo a Hannah Maruci, o tempo de espera pelo recurso “impacta tanto ou às vezes até mais do que o montante”.
“Se a gente fizer uma análise póstuma e só observar a quantidade, a gente não vai estar vendo o cenário inteiro, que é: mulheres receberam menos e depois. Principalmente as mulheres negras”, afirma.
Candidaturas competitivas
No levantamento parcial do 72horas, é possível apurar algumas das candidaturas femininas mais competitivas em termos de repasses.
Em Porto Alegre, considerando-se as três modalidades de financiamento e candidaturas, os dois candidatos que encabeçam as intenções de votos se aproximam no total de repasses declarados à Justiça eleitoral. O prefeito Sebastião Melo (MDB), que tem 41% das intenções de votos na pesquisa Quaest divulgada na última terça (17), declarou ter recebido R$ 7,6 milhões. Já a deputada federal Maria do Rosário (PT), com 24% das intenções de voto, declarou ter recebido R$ 7,9 milhões.
“Maria do Rosário está num partido de esquerda nos quais, não necessariamente, mas tem uma tendência maior a fomentar lideranças mulheres, ainda que não seja garantia nenhuma e que a gente tenha visto, inclusive, movimentos contrários desses próprios partidos como, por exemplo, a aprovação da PEC 9 (que trata da anistia aos partidos que não cumpriram as cotas de gênero e raça)”, analisa Hannah.
“Mas a Maria do Rosário é uma liderança, deputada federal por muitos anos, que tem uma base eleitoral muito consolidada e que, portanto, foi a aposta do partido. É um pouco mais subjetiva a peneira da majoritária do que a peneira do Legislativo, (de votos) proporcionais, porque aí você vai ter muitas candidaturas, importa mais para o partido a quantidade de votos que ele soma. Na majoritária não, você está apostando em uma pessoa, é muito mais personalizado. Então envolvem aspectos subjetivos também”, completa ela.
Em São Paulo, Tabata Amaral (PSB) e Marina Helena (Novo) são as únicas mulheres que têm participado dos debates eleitorais. Líder nas pesquisas, o atual prefeito Ricardo Nunes (MDB), declarou à Justiça eleitoral o recebimento de R$ 37 milhões para bancar sua campanha. O segundo colocado, Guilherme Boulos (Psol), recebeu R$ 40 milhões. Tabata, que aparece entre o terceiro e o quarto lugar, conforme a pesquisa, e Marina, que é a sexta colocada nos levantamentos, declararam ter recebido bem menos. Tabata recebeu R$ 15,2 milhões, enquanto Marina Helena, R$ 2,7 milhões.
Janad Valcari (PL) concorre à prefeitura de Palmas (TO) e soma a maior quantia em repasses à candidatura declarados, com R$ 7.712.000, em 12 transferências. A pesquisa Quaest com as intenções de voto para prefeito de Palmas, divulgada na quinta (19), aponta que a candidata encabeçando a disputa, com 42% das intenções de voto, e Eduardo Siqueira Campos (Podemos), 28%.
“Proliferação de vices”
A legislação eleitoral exige, desde 1997, que ao menos 30% das candidaturas sejam de um gênero. Na prática, esse piso foi destinado às mulheres. Mas somente a partir de 2014 a regra passou a ser cumprida. Em 2022, a cota para mulheres foi incluída na Constituição: no mínimo 30% dos recursos de financiamento de campanhas e de tempo de propaganda eleitoral devem ser reservados para mulheres e pessoas negras.
Hanna Maruci aponta que, no entanto, com a cota, “sem especificar se para (candidaturas) proporcionais ou majoritárias” foi observado uma mudança. “A gente observa uma proliferação de vices, que é uma forma, uma estratégia, não em todos os casos, mas em muitos casos uma estratégia do partido de direcionar recurso para uma chapa que tem como cabeça um homem, mas que esse recurso entre pela conta da vice, por exemplo, e possa contar como recurso feminino”, explica ela.
Anistia partidária
O Congresso aprovou em agosto uma Proposta de Emenda à Constituição conhecida como PEC da Anistia que “perdoa” condenações envolvendo a devolução de recursos públicos e multas impostas aos partidos por irregularidades nas prestações de contas. Na prática, segundo especialistas, a anistia beneficia partidos que ignoraram a aplicação das cotas de gênero e raça.
Para Hannah Maruci, a PEC 9/2023 agravou o cenário desigual entre homens e mulheres nas eleições. “No cenário da composição dos eleitos, quando a gente não tem uma mudança substancial na porcentagem de candidaturas e como essas candidaturas estão sendo investidas tanto financeiramente quanto politicamente pelos partidos e ainda o agravante de que a PEC 9 foi aprovada quase no começo das campanhas eleitorais, dando um recado muito claro que é ‘está tudo bem a gente não cumprir, depois a gente se anistia, não vai ter sanção’”.
“O que é muito complicado para a narrativa de igualdade de gênero e raça. Reforça esse não cumprimento da lei que a gente vê como histórico na política brasileira. É a quarta anistia aprovada, que anistia o não cumprimento de políticas afirmativas para a participação de mulheres e negros na política”, pontua a cientista política.