Em respeito às mais velhas, peço licença, agradeço e me pergunto: por onde andavam todos vocês, que não estavam lendo e ouvindo Sueli Carneiro?
Em 2009, Sueli Carneiro (filósofa, escritora e ativista) escreveu um ensaio intitulado “Mulheres negras e poder: Um ensaio sobre a ausência”, afirmando que, infelizmente, a relação entre as mulheres negras e o poder era inexistente.
Sueli não tratava apenas da ausência pela baixa representação, falava sobre aquelas mulheres negras que, mesmo presentes na institucionalidade, foram interrompidas por questões advindas da das discriminações de raça e de gênero. As políticas Matilde Ribeiro (Ex-ministra da SEPPIR) e Benedita da Silva (Ex-governadora, atual deputada federal, que também disputou a prefeitura do Rio, ficando em quarto lugar), estavam entre elas. Na descrição cirúrgica dos episódios, Sueli Carneiro tratou em seu texto sobre a violência política de gênero e raça sofrida por essas mulheres e como, ontologicamente, se vinculam as mulheres negras à subalternidade e não ao poder, especialmente na política institucional.
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Acontece que as mulheres negras, essas que o racismo e o patriarcalismo relacionam ao subalterno, além de integrarem o grupo de pertencimento, construção política e resistência da autora do ensaio, nunca deixaram de ouvi-la e ler seus trabalhos. Sueli Carneiro não trouxe apenas o diagnóstico que escancarava as fraturas dessa pseudo democracia, ela também propôs muitas soluções. E algumas delas, fruto de luta, conseguimos colocar em curso. Por isso, por Sueli e pelas gerações passadas de mulheres negras, hoje é possível que este seja um novo ensaio sobre as vitórias!
As eleições municipais, porta de entrada histórica para a participação das mulheres na política eleitoral no Brasil (em 1928, com Alzira Soriano, e a partir de 1932, com a conquista do direito ao voto em território nacional para as mulheres) nem sempre estiveram de portas abertas para as mulheres negras.
PublicidadeInsurgentes, foi através de Antonieta de Barros que as mulheres negras estrearam na política eletiva. Primeira parlamentar negra do Brasil, eleita em 1934, em Santa Catarina, Antonieta ainda se manteve única neste espaço por mais de uma década. Em sua primeira eleição, ela foi a primeira suplente, tendo ingressado no parlamento catarinense após o titular ser eleito para uma prefeitura; e até 1947 Antonieta se manteve como a única parlamentar negra do Brasil.
Em São Paulo, apenas em 1971 tivemos uma mulher negra no parlamento paulistano, Theodosina Rosário. Em alguns estados somente décadas depois, como no Rio de Janeiro e na Bahia, foi que as lideranças negras como Benedita da Silva (1982, no Rio de Janeiro) e Maria José (em 1990, no Estado da Bahia), iriam exercer seus mandatos. Essas parlamentares, seja dos municípios ou estados, são as exceções que confirmam a regra apresentada pela filósofa Sueli Carneiro: relatar a história das mulheres negras e o poder político no Brasil é descrever um ensaio sobre ausência.
No entanto, é preciso questionar: quem é que manda na história? Digo, quem consegue determinar a história daquelas que resistiram fazendo política nas casas de angu e nos terreiros, junto às trabalhadoras domésticas, criando sindicatos, gestando soluções paralelas quando enquanto o Estado relegava o pão duro e a porta fechada? Ninguém!
E parte deste recado foi expresso nas urnas em 2020.
Porque para as mulheres negras, o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018, foi um ataque que precisava e está sendo respondido, de todas as formas – com cobranças intermitentes sobre quem mandou matar e o porquê e com mais mulheres negras na política. Não nos retiraram apenas uma representante do parlamento carioca, Marielle também estava entre os cinco vereadores mais votados da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, com 46.502 votos – como ela mesma fazia questão de registrar!
E cada um desses votos importava porque eles comunicavam sobre a crença em uma campanha que se apresentou com o lema Ubuntu (eu sou porque nós somos), que resgatava a ancestralidade negra, pensando a cidade a partir de uma perspectiva interseccional de gênero, raça e classe.
Por isso era urgente que nesse 2020 inaugurássemos em nossa história um ensaio sobre as vitórias, abordando uma outra relação entre mulheres negras e o poder. Hoje é possível afirmar que a sub-representação começa a esmaecer quando, além da presença, temos nas novas vereadoras negras os resultados mais expressivos de muitas câmaras por todo Brasil – e é também por Marielle e cada um dos seus votos!
Nas eleições municipais de 2016 apenas 32 mulheres negras foram eleitas em todo país. E em nove capitais (São Luis, Recife, Campo Grande, Cuiabá, Curitiba, Porto Alegre, Florianópolis, Aracaju, São Paulo) sequer uma vereadora negra compôs o quadro parlamentar.
Neste ano de eleições incertas e durante a maior crise sanitária da nossa geração, começamos a virar esse jogo, com cinco dessas nove capitais (Recife, São Paulo, Cuiabá, Porto Alegre e Curitiba) outrora sem mulheres negras, tendo agora elas próprias como as mais votadas.
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O ensaio sobre as vitórias passa por colecionar nomes ainda inéditos na política nacional, e outros já históricos por suas votações – e esses são nomes de mulheres negras! Falamos de Karen Santos, eleita em Porto Alegre com 15.702 votos; no Recife, temos a Dani Portela, que foi a vereadora mais votada com 14.114 votos; Érika Hilton, eleita com 50.477 votos, fez-se a primeira mulher transexual eleita para a Câmara de Vereadores de São Paulo e a sexta mais votada do quadro geral.
E, ainda nas capitais, Carol Dartora, em Curitiba, foi a terceira mais votada e a primeira vereadora negra do município; Edna Sampaio, a oitava vereadora mais votada de Cuiabá; Tainá de Paula, no Rio de Janeiro, a nova vereadora mais votada de toda a Casa Legislativa.
As vitórias ainda estão sendo contabilizadas porque elas vão além das urnas! Trata-se do projeto de cidade, de política, disputado por essas mulheres que reinsere as pautas históricas do movimento de mulheres negras no coração da política local. Falaremos do bem viver, em defesa das vidas, sem que seja possível que as nossas fiquem pelo caminho.
E para isso, foram cumpridos parte dos requisitos já listados no ensaio sobre ausência de Sueli Carneiro. Em seu texto ela nos disse o que era preciso para reverter este quadro de sub-representação, listando ações como a garantia de financiamento público com recorte de raça, cumprimento das cotas de candidaturas determinadas por lei e que fosse assegurada a previsão de recursos para capacitação e formação política das mulheres (fundo partidário). Carneiro nos disse tudo isso em 2009.
E aqui estamos, onze anos depois, para contar para a filósofa e ativista que tanto nos ensinou, Sueli Carneiro, que uma parte das suas recomendações foram cumpridas nessas eleições. E que seguimos precisando dela para tratarmos sobre as mulheres negras e o poder: desta vez, a pauta é a ampliação da presença!
Novos ensaios nos esperam!
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