Francisco Christovam*
Inicialmente, é importante esclarecer que marco regulatório ou marco legal nada mais é do que um conjunto de normas, leis e diretrizes que regulam o funcionamento de setores da economia, nos quais agentes privados prestam serviços de utilidade pública, por delegação.
Na área dos transportes coletivos, a criação de um marco regulatório deverá atender à maioria das necessidades atuais do transporte público multimodal (ônibus, barco, metrô e trem) e deverá ser vista como uma reforma estrutural profunda, de longo prazo, que servirá, também, para resumir, condensar e atualizar toda a legislação que ampara a base jurídica para a elaboração dos processos licitatórios e dos contratos de concessão.
Em 22 de setembro de 2021, o ex-senador Antonio Anastasia, apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Nº 3278/2021, com o propósito de atualizar a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Federal Nº 12.587/2012), bem como as leis federais Nº 10.636/2002 e Nº 10.257/2001. Esse Projeto de Lei, que pode ser considerado como uma primeira iniciativa no sentido de se obter o Marco Legal dos Transportes, foi arquivado no final da legislatura passada.
Contudo, ao longo de 2022, os técnicos da Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana (Semob), órgão do antigo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MDR), atual Ministério das Cidades, submeteram ao Fórum Consultivo da Mobilidade Urbana, criado pelo Decreto Nº 10.803, de 17 de setembro de 2021, uma minuta de marco legal que, após várias reuniões, culminou com a elaboração de um documento bastante abrangente e muito bem estruturado.
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O artigo 2º da minuta estabelece que “O transporte público coletivo, direito social e dever do estado, é serviço público de caráter essencial, indispensável ao desenvolvimento socioeconômico de toda a população e ao atendimento das necessidades de deslocamento das pessoas no território, cabendo à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, de forma compartilhada e no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito e organizar os serviços em rede única, intermodal, acessível, abrangente e integrada”.
PublicidadeO documento contém capítulos específicos que tratam da organização e produção dos serviços de transportes, considerando a qualidade dos serviços e a produtividade do setor, a organização e o planejamento das atividades, o financiamento do custeio e dos investimentos necessários, a regulação e a gestão dos contratos e, finalmente, a necessidade de ampla transparência e publicidade, bem como do controle social da prestação dos serviços.
No período de 28 de novembro de 2022 a 27 de fevereiro de 2023, esse documento foi submetido à consulta pública e recebeu 870 sugestões e contribuições de profissionais liberais, movimentos sociais, entidades da sociedade civil e órgãos de governo, com o objetivo de aprimorar o texto sob análise, sendo 662 manifestações encaminhadas pela plataforma “Participa +Brasil” e as demais por outros canais de comunicação com a Semob.
Vale destacar que, praticamente, metade das contribuições apresentadas se refere à parte inicial da minuta do Marco Legal em discussão. O Capítulo I, que trata das “Disposições Gerais” (princípios fundamentais, objetivos e conceitos) recebeu 235 sugestões e o Capítulo II, que trata da “Organização dos Serviços” (titularidade, planejamento, regulação, transparência, publicidade e controle social) recebeu outras 211 sugestões.
É importante mencionar, também, que o Capítulo III, que aborda as questões relativas ao “Financiamento dos Serviços de Transporte Público Coletivo”, estabelece todo um regramento para a cobertura dos custos operacionais, considerando receitas tarifárias, receitas extra tarifárias ou de projetos associados, bem como dotações específicas dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
No que se refere aos investimentos necessários à prestação de um serviço de qualidade, principalmente em infraestrutura, há que se considerar, também, a participação dos entes federativos na elaboração dos projetos e na implantação das faixas de domínio, com a máxima prioridade possível para o transporte coletivo.
Embora a Lei Federal Nº 12.587/2012, no seu artigo 9º, já tenha estabelecido a diferenciação entre tarifa técnica ou de remuneração e a tarifa pública ou de utilização, a maioria dos poderes concedentes insiste em estabelecer a tarifa paga pelos passageiros, num valor insuficiente para cobrir os custos da operação. Essa prática acaba comprometendo a saúde financeira das empresas operadoras e a própria qualidade dos serviços que são prestados à população.
Como já é consenso entre os especialistas que não é mais possível atribuir aos passageiros a totalidade dos custos da prestação dos serviços, o Capítulo que trata do financiamento do setor deve ser um dos itens mais importantes de toda essa discussão, com vistas a garantir o acesso universal aos serviços, que devem ser oferecidos à população com qualidade e, principalmente, com tarifa módica.
A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU – apresentou um total de 60 contribuições ao texto sob consulta, focando as suas sugestões nos itens que dizem respeito aos conceitos gerais, organização dos serviços, financiamento do setor e na regulação e gestão dos contratos, procurando explicitar conceitos e a futura aplicação do instrumento legal.
Com base na larga experiência em lidar com textos legais, uma das contribuições da NTU foi no sentido de garantir que receitas extratarifárias não sejam instituídas somente pelo poder concedente e que possam ser oriundas de outros entes federados, a exemplo do Auxílio Emergencial à Gratuidade dos Idosos (EC 123/2022), cujos recursos foram provenientes da União.
No capítulo que trata da organização e do planejamento dos serviços, a NTU sugeriu que unidades regionais de transporte coletivo possam ser compostas por agrupamento de municípios limítrofes, pertencentes ou não a uma região metropolitana ou aglomeração urbana, legalmente instituída.
A NTU também recomendou que se inclua no texto da lei o instituto do subsídio, não o limitando à disponibilidade de recursos orçamentários; mas, considerando a possibilidade de subsídios cruzados, intra e intersetoriais, assim como consta no atual texto da Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Por derradeiro, a NTU contestou conceitos na delegação do serviço de transporte público coletivo que engessam o poder concedente no ato da contratação, a exemplo de suprimir da minuta que a gestão financeira seja feita, exclusivamente, pelo poder concedente, sugerindo também que a modalidade de delegação da operação seja pela concessão comum ou pela concessão patrocinada.
Segundo os técnicos da Semob, todas as contribuições encaminhadas serão compiladas e consolidadas num novo documento, que será apresentado aos participantes do Fórum Consultivo, para uma nova rodada de análises, discussões e proposições. Na sequência, o novo documento será, novamente, submetido à consulta pública.
Depois de mais uma fase de consolidação das eventuais propostas apresentadas, a Semob deverá, ainda, realizar audiências públicas para uma última avaliação e aprimoramento do texto. O prazo estabelecido para a realização das atividades a serem desenvolvidas é de 6 meses e a expectativa dos técnicos da Semob é no sentido de encaminhar o texto final ao Congresso Nacional na Semana da Mobilidade, de 18 a 22 de setembro deste ano.
É bem verdade que a forma como o documento vem sendo elaborado envolve um processo de construção muito participativo e democrático; entretanto, se as discussões começarem a ter um fim em si mesmas, perde-se o foco e a objetividade do trabalho e o projeto passa a ser uma iniciativa de longo prazo. Em síntese, é preciso ter em mente que estamos diante de uma grande oportunidade de se escrever uma nova história para os transportes coletivos de passageiros no Brasil, a partir de uma nova base jurídico-legal.
*Presidente executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), vice-presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (Fetpesp) e da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) e do Conselho Consultivo do Instituto de Engenharia