Em decorrência do assassinato de três médicos, um deles irmão da deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), na Barra da Tijuca, no último dia 5, os governos federal e do Rio de Janeiro intensificaram o diálogo para aumentar a presença de forças federais em regiões controladas pelo crime organizado. Especialistas com perspectivas distintas sobre segurança pública alertam que, sem reformas mais amplas, o esforço concentrado não trará resultados.
O governo federal pretende enviar ao Rio de Janeiro, a partir da próxima segunda-feira (16), cerca de 300 policiais da Força Nacional de Segurança, além de reforços da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que ficará encarregada de coordenar as forças federais durante as operações no Rio. Elas deverão iniciar uma série de operações, juntamente com forças locais, inicialmente no Complexo da Maré e posteriormente em outras comunidades.
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Tanto o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) José Claudio Souza Alves, doutor em sociologia, quanto o ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro Rodrigo Pimentel enxergam com maus olhos a tentativa de enfrentamento à criminalidade por meio de mera intensificação da atividade policial.
José Claudio relembra que, ao menos desde 2003, já existe o consenso de que a solução para o combate ao crime organizado no Rio de Janeiro requer a construção de políticas públicas simultâneas e multissetoriais de longo prazo nas áreas de maior criminalidade. “Uma das direções, talvez a mais importante, é a manutenção dos jovens em escolas à noite e nos fins de semana. Não com conteúdo, mas com atividades socioculturais: deve-se modificar a forma para a população ver o mundo e ver a si mesma”, defende.
Sem o acesso constante à educação e ao ambiente escolar, explica o sociólogo, os mais jovens que vivem em locais de baixo poder econômico ficam expostos aos interesses de grupos armados. Essa política, porém, requer outras mudanças estruturais na gestão local, incluindo reformas orçamentárias para garantir os recursos necessários para manutenção de novas escolas, criação de sistemas de transporte que garantam esse acesso e estabelecimento de um aparato de assistência social para que os jovens não precisem recorrer ao crime para se manter financeiramente.
Além do esforço concentrado para garantir acesso à educação, o professor considera vital o empoderamento político da população dessas comunidades. “Um grupo armado estabelecido em um território por um longo período constitui uma estrutura de poder imbatível. (…) Para desmontar essa estrutura, é necessário fortalecer outras formas de poder nesse território. Essa questão é eminentemente política”, ressalta.
Sem programas de formação de lideranças políticas locais que possam fazer frente à autoridade dos grupos armados em seus próprios territórios, o pesquisador considera inútil o esforço com forças policiais. “Todos os países que tentaram resolver o crime apenas pela força, como México e Colômbia, se deram mal. Para cada um que a polícia prende, mata, fizer o que for, existem outros 200 jovens para assumir o lugar”, aponta.
Rodrigo Pimentel, que além da experiência no Bope é pós-graduado em sociologia urbana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), observa o problema na abordagem dos governos federal e estadual em outro aspecto. Na visão dele, operações policiais em larga escala no estado não trarão resultado se não forem acompanhadas de uma reforma no processo penal e de uma mudança na abordagem ao redor do crime em seu estado.
O ex-policial chama a atenção para a mudança na realidade do crime organizado no Rio de Janeiro ao longo da última década, caracterizado pelo fim da distinção entre milícia e narcotráfico, bem como pelo fim do isolamento dos grupos armados ao território das favelas. “Todas essas facções desenvolvem as mesmas atividades: venda de maconha, cocaína, desvio de sinal de TV à cabo, exploração do transporte alternativo, venda de bujão de gás e de cigarros paraguaios. Não há mais diferença na ação de milícias e traficantes. Antigamente havia diferença, hoje não há mais”, considera.
O cenário antes dividido entre milícias e narcotráfico hoje é tomado, conforme a explicação de Pimentel, pelas narcomilícias, que formam juntas um único ecossistema de alianças e rivalidades. Esse ecossistema já saiu do limite geográfico das regiões mais pobres, proporcionando episódios como o ocorrido na Barra da Tijuca, bairro nobre da capital fluminense.
Sem uma atualização na abordagem sobre a realidade do crime organizado, ele não vê a possibilidade de sucesso para as próximas operações. “O que o governo federal está tentando fazer agora é repetir estratégias já fracassadas: ocupação da Maré e megaoperações. (…) Tudo que o governo está oferecendo já foi feito em algum momento nos últimos 20 anos”, relembra.
Pimentel também considera a atual legislação penal ineficaz no enfrentamento ao crime organizado. “Boa parte dos bandidos envolvidos na morte dos médicos já tinha sido presa mais de uma vez. Exemplo disso é o Abelha, principal bandido comandando o Comando Vermelho nas favelas da Barra da Tijuca, já foi preso e saiu pela porta da frente do presídio. (…) Se eu pudesse dar uma dica ao ministro Flávio Dino (Justiça), é que garanta com que todos os bandidos fiquem presos, porque todos esses já foram presos alguma vez”, afirma.
Os dois especialistas consideram que falta vontade política na adoção de políticas eficazes de enfrentamento ao crime organizado. De um lado, José Claudio critica partidos de esquerda por constantemente deixarem o tema da segurança pública de lado, preferindo tratar de temas de maior interesse eleitoral. Pimentel já expressa crítica aos parlamentares de direita, afirmando que na atual legislatura houve a perda do foco sobre projetos de relevância para a pauta, além de uma queda brusca na qualidade do debate sobre o assunto.