No tempo dos guias e tutoriais, preparei aqui as instruções para o filho único do meu pai.
Primeira coisa: não precisa saber como mudar o mundo. Saber usar o banheiro público já é um bom começo. E muda o mundo.
Avançando (e a próxima tem a ver com avançar mesmo): viver é uma enorme travessia. E atravessar na faixa ajuda bem a chegar inteiro do outro lado. Dos dois “outros lados”: o da rua e o da existência.
Pelos caminhos, por favor, não entre na fila dos fura-filas. Já tem gente demais nela. Se for entrar na fila do jeitinho brasileiro, cuidado também: vai ser passado para trás. O golpe tá aí, pratica quem quer.
Para todas as instruções anteriores, tenha visão. Não falo de carreira, nem de futuro, tampouco de investimentos. Falo de visão mesmo, o sentido de ver. Hoje tem até câmera que “vê” em 360°, enquanto a gente não enxerga o “invisível social” que está embaixo do nariz.
Nossa cegueira talvez seja porque na mesma paisagem dos invisíveis, estão edifícios colossais. Mas repare: não adianta você produzir maravilhas arquitetônicas (que ilustram revistas de escritório chique) se não souber moldar, esculpir, manejar a mais maleável das matérias, e, paradoxalmente, hoje a mais dura delas: o cérebro. E fique tranquilo, a natureza é sábia: o crânio, essa casca de fora, já é duro o suficiente para nos fazer biologicamente viáveis no cotidiano. Isso para que o recheio, o “de dentro”, seja ativo, pulsante… flexível.
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E por falar em flexibilidade, importantíssimo agora: seja democrático. Ser democrático não é só conversar com o espelho, a menos que o seu espelho seja como o da bruxa em Branca de Neve, que diz verdades inconvenientes (embora verdades). Há crescimento escondido dentro do conflito, ainda que seja para afastá-lo daquilo que desumaniza. Permita-se ao menos ouvir. Ouvir genuína e respeitosamente. Paulo falou mais bonito: “Examinai tudo. Retende o bem”.
Por último, um dos tópicos centrais: se for pai um dia, não o seja só na definição técnica ou jurídica. São as menos importantes. O espermatozóide é contribuição microscópica demais frente aos infinitos atributos que você pode semear na vida de sua cria.
Em tempo: não sou filho único. Tenho um irmão e uma irmã. Sou o caçula de três. Mas queria deixar claro que, se rabisco aqui algumas “instruções”, o primeiro destinatário delas… sou eu mesmo.