Foi longa a tarde de 26 de julho na Casa de Oxalá! Sentadas em duas esteiras, o barco de iaô esperava para o início dos rituais. De vez em quando nos entreolhávamos em um diálogo mudo e significativo.
Chegou a hora!
Os sons e os cheiros de axé enchiam a casa de afetos positivos. O silêncio e o som traziam de muito longe um significado especial como enigmas da nossa existência humana e da nossa viagem para o encontro ancestral.
Até o ar respirado mobilizava o segredo sagrado de tantos anos de espera. Eu não sabia, mas o meu caminho estava traçado desde sempre. A minha consciência estava envolta em um silêncio que ia apagando parte do ser que eu sempre fui e que a minha racionalidade desconhecia. Uma atmosfera de renovação da vida me contava a história de um tempo pregresso revelando uma disposição transtemporal.
O cacarejar de bichos, o bater das tampas nas panelas, o moinho ligado, o burburinho de vozes abafadas e o abre e fecha das portas e das malas quebravam o silêncio, mas não reduziam as intercalações dinâmicas de volta ao meu passado remoto. Estou entrando no barco de volta à minha ancestralidade. Agora sou eu, Mãe Stella, todos os corpos pretos do Afonjá e minha orixá Oxum.
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Eu vivo a recuperação de uma vida renovada que se aproxima cerimoniosamente. Vivo a relação interativa entre o tempo presente e a conexidade com o axé plantado pelas mãos de um coração mais antigo do que o seu tempo vivido desde o outro lado do Atlântico. Eu agradeço a vosmecê Mãe Aninha.
PublicidadeAs águas saindo das torneiras ou despejadas nos potes soam como cachoeiras caudalosas. Do lado de fora, vem o cheiro mágico da alquimia das folhas e o som do pilão. O pilão bate quase como a batida do coração. Uma batida maior e uma menor. Igualzinho à assimetria das batidas do nosso coração. Nós, seres biológicos, somos criados com a cabeça bem junto ao coração da mãe. É possível que o primeiro som que escutemos na vida pareça com o som do pilão.
Levantei da esteira acompanhada da minha mãe Vardinha, a minha ojubonan. Uma por uma, as pessoas, até as mais velhas, levantaram solenemente para me saudar, desejar uma boa viagem e um feliz retorno. Emocionada, chorei. Pensei, e agora, o que irá acontecer? Nós, do barco, nos olhávamos silenciosas. O velho alabé, pai Darinho, Ki Olorum kosi purê estava sentado diante do atabaque de onde não saiu a noite inteira. É uma saudosa memória. Durante muito tempo eu me perguntei por que a iniciação de Iaô se organiza em barcos. Sempre pensei, por que barcos? Éramos oito iaôs neste barco que voltava para buscar sua ancestralidade vitoriosa.
O fio do tempo e da história foi sendo desdobrado deixando livre o caminho para a escrita da minha nova história. História da minha vida e humanidade restaurada. Como diz o poeta Gil, “pra nascer tem que morrer pra germinar”. Naquela noite perdi meu nome de registro e fiquei a esperar o meu nome ancestral. O meu urokó que só aconteceu no dia da festa da saída quando voltamos ao mundo natural.
No ronkó, Mãe Stella me propiciou uma dança sagrada inesquecível. Ela dançava e eu seguia girando lentamente, desfazendo caminhos e refazendo as memórias mais antigas. Fui girando, girando… Eu não sabia para onde ela me levava. Confiei plenamente.
Depois de muitos rituais, percebi que o chão da casa era o meu lugar. Nem chinelos, nem cadeira, nem cama nem colchões. Uma esteira no chão, arrumada com preceitos e lençóis branquinhos, me esperava exalando cheiro de folhas novas. A terra é viva! Durante dias e dias, estive a experimentar o calor da terra mãe que nos sustenta e que no último dia vai acolher nosso corpo sem vida. A ideia do barco vinha e voltava a todo momento. O que o ritual de iniciação tem a ver com o navio negreiro? E o que preciso aprender para a minha vida? Saímos em direção a fonte de Oxum.
O chão tinha muitas pedrinhas. Caminhei firme assim mesmo. Eu estava trêmula e não era de frio. A caminhada se fez silenciosa até uma das mulheres dar início a uma cantiga muito suave que todas responderam como um mantra, Iaô loni… Iaô loni… Iaô loni. Elas iam nos protegendo com os seus corpos que se achegavam cada vez mais. Cantavam juntas e, suavemente, como se houvesse um ensaio. E para que ensaio? Há muitas luas, corpos pretos do Afonjá cantam e dançam mostrando o caminho que realça a humanidade que nunca se perdeu.
Iaô loni…Iaô loni. Todas respondiam com o mesmo tom de voz. Iaô loni… A tradução é metafórica e muito simples para seu significado. Iaô, hoje é o dia. Para quem seria este aviso? Ou seria um convite?
Protegida pelas sombras das árvores e vestidas de águas e folhas do amaci, as mais velhas cantando sempre me apresentaram às mães ancestrais do Afonjá. Chorei baixinho. Não era choro de tristeza nem de medo. A profusão de ambientes e estímulos sensoriais me envolveu com sentimentos de gratidão por todas as mães ancestrais que já caminharam na terra de Xangô.
Pela iniciação encontrei o meu lugar na cadeia simbólica da mãe primordial, da afirmação e reatualização de aspectos históricos, cosmogônicos e da cosmopercepção do universo nagô. Desterradas do seu berço ancestral, escravizadas e renascidas nesta terra deixaram como legado maior o ritual de iniciação no Candomblé. As subjetividades encadeadas fazem o caminho da transmutação pela dignidade humana que não ficou perdida nos porões navio negreiro. Tudo estava de volta na minha singularidade mais profunda. Elas, as mães pretas, trouxeram os segredos sagrados bem guardados entre a pele e a carne e nada se perdeu.
O barco de iaô vai e vem desenrolando o fio do tempo no sentido contrário do barco que trouxe meus ancestrais. Ao longo dos dias e dos rituais, cenas muito antigas voltaram como expressões reais da minha existência repleta de dores, mas também uma ontologia desveladora e triunfante.
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