Na semana passada, logo depois da entrevista que concedeu ao Congresso em Foco, a ex-ministra da Mulher Damares Alves recebeu uma comitiva de mulheres líderes religiosas e políticas da região Centro-Oeste. Elas vieram a Brasília para tentar falar com Damares e com a primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Acabaram só conseguindo a agenda com Damares. Acabamos conseguindo acompanhar parte dessa reunião após a entrevista. E o que se ouviu ali ajuda muito a explicar a altíssima taxa de rejeição que o presidente Jair Bolsonaro tem entre as mulheres.
O que ficou claro na conversa de Damares com as demais líderes políticas e religiosas – todas evangélicas, como ela – é que há uma pauta identitária de gênero à direita também. E essa pauta é quase que solenemente ignorada na sua totalidade pelos líderes conservadores homens. Sejam eles líderes políticos, como o presidente Jair Bolsonaro, sejam eles líderes religiosos, como os pastores das igrejas evangélicas.
O resultado prático disso quanto ao que as pesquisas mostram que deverá acontecer nas urnas do país em outubro é esse paradoxo. A maioria da população brasileira se declara conservadora. Uma grande parte dela hoje já não tem a vergonha que tinha no passado de se declarar de direita. Mas a maioria dessa população hoje tende a votar em Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, candidato de um partido identificado com a esquerda. E esse percentual é ainda bem maior entre as mulheres, que são a maioria da população e do eleitorado brasileiro.
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É evidente que a pauta identitária feminina que essas líderes políticas e religiosas discutiram com Damares é bem diversa da pauta que os grupos feministas de esquerda professam. Certamente ela passa longe de replicar temas como, por exemplo, o direito ao aborto. Muito pelo contrário. E também não professa a ideia de núcleos familiares diferentes do tradicional “pai, mãe e filhos”. Mas, por outro lado, há pontos de aproximação. E são esses pontos de aproximação que hoje são pouco percebidos.
Na conversa, essas líderes procuraram Damares porque hoje o que mais as preocupa é a dificuldade que elas dizem ter em obter no ambiente evangélico, junto aos líderes homens das suas comunidades, apoio para combater os casos de violência contra a mulher. Como disse uma das líderes na conversa com Damares, elas queriam que os pastores, diante da denúncia de que um homem da comunidade religiosa bate na sua mulher, não apenas fizesse uma oração com ela. Que ele, além de líder religioso, como líder daquela comunidade, fosse capaz de orientar aquela mulher a denunciar a violência à polícia. Que ele, com a influência que tem sobre a comunidade, fosse capaz de chegar naquele homem a instá-lo a mudar de comportamento.
Essas mulheres querem ter mais voz nas suas comunidades. O segmento evangélico cresce especialmente entre as parcelas mais carentes da população. Parcelas em que cresce o número de famílias lideradas por mulheres. Mulheres que trabalham. E que, assim, sentem pesar sobre elas também o preconceito, a diferença. Que também se sentem da mesma forma capacitadas a disputar de igual para igual com homens. Ainda que seu modo de ver o mundo seja mais conservador em outras áreas.
Na entrevista que deu ao Congresso em Foco, Damares fez um esforço de tentar demonstrar que o governo Bolsonaro, especialmente a partir do Ministério que ela comandou, teria feito mais pelas mulheres do que a comunicação do governo foi capaz de transparecer. Se fez ou não fez, essa é uma outra discussão, que seria muito mais longa. Mas que foi incapaz de comunicar, disso não há muita dúvida.
Até porque o próprio Bolsonaro não demonstra, nos seus discursos e gestos, muita preocupação com isso. Ele mesmo já chegou a declarar não achar justo que uma mulher, porque engravida e vai parar de trabalhar por um tempo por isso, deva ganhar o mesmo que um homem. Mostra que passa longe da sua cabeça a ideia de que, justamente por ser capaz de ter essa jornada dupla, a mulher deveria ser muito mais valorizada. E que, além disso, nada deveria impedir um novo tipo de organização familiar, na qual os papeis fossem mais bem divididos. Homem pode trocar fralda, dar banho, dar papinha, ajudar na lição de casa, varrer a sala, fazer faxina, lavar a louça. Tem todos os apetrechos físicos e intelectuais para igualmente fazer todas as tarefas domésticas além das suas tarefas prossionais.
E nada disso é discussão política ou ideológica. É a rotina de mulheres que dão duro. E que são discriminadas na sua rotina. E que buscam mais espaço. E que não conseguem enxergar nada disso junto aos homens que as cercam. Sejam líderes políticos, comunitários ou religiosos. Mulheres que irão às urnas em outubro. E irão ali manifestar das suas formas no voto que darão essa sua insatisfação.
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