Quando o protagonista de um programa destinado a esclarecer as últimas dúvidas do eleitor às vésperas de uma eleição foi um padre aparentemente fajuto em quem ninguém vota, fica mais do que claro que existe algo de muito errado no formato do programa e nas suas regras.
Padre Kelmon, o candidato do PTB, é o retrato pronto e acabado do fracasso de alguns aspectos do nosso modelo democrático, dos prejuízos políticos da nossa enorme pulverização partidária, da tibieza de caráter da nossa elite política, da necessidade imperiosa de o país exterminar de vez aquilo que o jornalista Lúcio Vaz batizou em um livro de sua autoria de “Ética da Malandragem”.
O site de humor Sensacionalista brincou que Padre Kelmon foi confundido com um figurante ao chegar nos estúdios da TV Globo. O também humorista Fábio Porchat garantiu aos seus seguidores nas redes sociais que o suposto padre não era um personagem do seu programa Porta dos Fundos. Porque em tudo Padre Kelmon era caricato. Em tudo ele gritava em todos nós o profundo questionamento sobre por que tal figura estava ali.
A candidata do União Brasil, Soraya Thronicke, foi extremamente feliz ao pespegar em Kelmon a pecha de “padre de festa junina”. Porque era exatamente isso o que ele parecia. Se declara padre da Igreja Ortodoxa. A comunhão ortodoxa brasileira diz que padre da congregação ele não é. Ele afirma que seria ligado a uma certa Igreja Ortodoxa do Peru, mas aí também há controvérsias. A cruz extravagante que ele usa não faz parte da vestimenta tradicional de um padre. Nem a touquinha. Assim, boa parte do elemento religioso que ele apresenta seria falso. Fantasia, e não indumentária religiosa.
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Então, Kelmon abre a boca para falar de moralidade e contra a corrupção. Mas ele é candidato apenas porque o candidato original do PTB, Roberto Jefferson, não pode concorrer porque está condenado pela Justiça. Estava em prisão domiciliar quando foi lançado candidato e chegou a passar uma temporada no presídio de Bangu. Que lança impropérios contra o mensalão e os esqumas de corrupção na era do PT, esquecendo que Jefferson foi cassado pela Câmara em consequência daquele episódio. Condenado depois a sete anos e 11 dias de prisão. Assim, é igualmente falso o elemento de combate à corrupção representado pelo padre.
Então, o padre supostamente fajuto com seu combate fajuto à corrupção e nenhum voto ocupa um espaço no debate político mais importante do primeiro turno com a única função de fazer escada ao presidente Jair Bolsonaro, do PL, na sua tentativa de reeleição. A Justiça eleitoral precisa pensar em elementos para evitar que nas próximas eleições a discussão política seja de novo vítima desse tipo de armadilha.
Como encontrar um modelo no qual a aspiração de candidatura partidária seja de fato uma coisa legítima e sincera é o grande desafio dos legisladores e da justiça para os próximos tempos. Ou transformaremos a discussão política em um constrangedor programa humorístico ou numa discussão de botequim, como aconteceu na noite de quinta-feira (29) e na madrugada desta sexta-feira (30).
No mais, como avaliar vencedores na noite em que o “padre de festa junina” colocou-se no centro do debate? Bem mais assertivo e por vezes agressivo que na sua morna participação no debate da Band, Lula, que lidera as pesquisas saiu-se melhor. Mas deveria ter evitado bater boca coo fez com Padre Kelmon, desrespeitando as regras do debate.
Também bem mais agressivo que no debate da Band – onde já tinha protagonizado o espetáculo misógino do ataque à candidata do MDB, Simone Tebet, e à jornalista Vera Magalhães –, Bolsonaro quis ser o “lacrador”. Isso pode marcar pontos junto à sua militância que o trata como “mito”, mas que diferença fará diante do que realmente ele precisa, que é ampliar votos para além de seu eleitorado fiel? Além disso, levou uma entortada de Simone ao querer fazer tabela com ela para insinuar responsabilidade Lula no assassinato de Celso Daniel. “Por que não pergunta ao Lula?”, respondeu Simone. O uso dessas tabelas – outro papel a que Kelmon se prestou – pode ter passado certa impressão de covardia de Bolsonaro, algo nada condizente com sua estratégia de “lacrador”.
Ciro Gomes, do PTD, perdeu mais uma chance. No meio da discussão de botequim e da festa junina de Kelmon parecia meio desorientado. Logo no início, levou uma invertida de Lula quanto à sua participação como ministro no governo do PT e os elogios que fazia a políticas que hoje critica e não conseguiu mais encontrar um tom para explicar tal postura.
Já, no oposto, Soraya Thronicke aproveitou mais uma chance. Ela entrou na campanha sabendo desde o início de que seria coadjuvante. Mas, toda vez que aparece no palco, rouba a cena. O “padre de festa junina” pespegado em Kelmon já é o grande meme do debate.
E, no meio da confusão entre boteco e arraiá do debate, Simone Tebet destacou-se como alguém disposta a levar de fato alguma discussão sobre o país. Evitou com elegância a armadilha tentada por Bolsonaro sobre Celso Daniel. E evitou ataques mais pesados a Lula, já parecendo sinalizar algum apoio em um eventual segundo turno ou aproximação em um eventual governo. Aliás, algo coerente com o que já é a posição de muitos no MDB.
Em uma eleição que está no fio entre ser definida no primeiro turno ou ir para o segundo turno, o bom desempenho de Simone e Soraya pode ter definido que o possível vencedor do debate foi a hipótese do segundo turno. No caso, então, um empate entre Lula e Bolsonaro que, pelo movimento vindo de baixo, acaba por beneficiar Bolsonaro.
Ah, havia também Felipe D’Ávila. do Novo…