Diogo Silva Correa *
Embora não seja propriamente um fenômeno “novo” ou recente, a relação entre crime e religião (sobretudo evangélica-pentecostal) tem obtido uma espécie de nova “onda” de visibilidade, notadamente em função da aparição do “Complexo de Israel”. Com isso, termos como “traficante evangélico”, “narcopentecostalismo” ou “narcorreligião” têm sido cunhados por jornalistas e pesquisadores para definir o fenômeno de emaranhamento ou mesmo mistura entre religião e vida do crime. Enquanto pesquisador do tema, gostaria de chamar a atenção para alguns elementos, ancorados no contexto da pesquisa etnográfica que realizei na favela Cidade de Deus, que me fazem hesitar quanto ao uso de tais categorias.
- Em primeiro lugar, é preciso salientar que, desde a primeira década dos anos 2000, pesquisadores como Christina Vital e Cesar Teixeira já diagnosticavam diversos efeitos oriundos da mudança da paisagem religiosa em favelas cariocas sobre a vida do crime. O trabalho de Vital já apontava como o crescimento da religião evangélica na favela de Acari havia tido um impacto considerável sobre os traficantes locais. O trabalho de Cesar Teixeira, por sua vez, mostrava como essa coabitação entre pentecostais e traficantes num mesmo território havia contribuído para emergência de uma nova categoria tipificada em favelas cariocas: a dos ex-bandidos. Estes últimos, Teixeira bem indicava, não se referiam aos ex-egressos do sistema prisional, mas àqueles que haviam abandonado a vida do crime por intermédio da conversão religiosa pentecostal.
- Meu trabalho trabalho etnográfico na Cidade de Deus, que se dá entre os anos de 2011-2014 e que foi recentemente publicado sob o título “Anjos de Fuzil: uma etnografia das relações entre tráfico de drogas e religião pentecostal na favela Cidade de Deus”, também diagnostica fenômenos semelhantes àqueles percebidos por Vital e Teixeira. Nele, argumento como a existência de uma complexa coabitação entre traficantes de drogas e evangélicos no território da favela Cidade de Deus teria produzido um duplo fenômeno: de um lado, um estilo de pentecostalismo particular, gerado na relação com a forma de vida do crime e com um ambiente caracterizado pela recorrência de situações violentas; de outro, um tráfico de drogas que abraça, em boa parte, uma cultura, uma linguagem ou mesmo uma gramática pentecostal. Tal fenômeno teria produzido uma complexa relação entre coabitação (como Vital bem já apontara e eu exploro na primeira parte de meu livro) e alternância (como Teixeira bem mostrara e eu exploro na segunda parte do meu livro). Mas cabe salientar, e a todo momento deixo claro em meu trabalho, que tal fenômeno de transformação mútua (sim, o tráfico se transformou com o crescimento dos evangélicos no território da Cidade de Deus, assim como o pentecostalismo se transformou em sua relação com o universo do crime) não significou uma fusão entre ambos. Afinal, moradores, traficantes e crentes da Cidade de Deus continuam a saber discernir o que é próprio do mundo da igreja pentecostal e o que é próprio do mundo do crime; grosso modo, eles sabem diferenciar o que é um traficante e o que é um crente.
- A partir do meu contexto etnográfico, afirmo, portanto, que categorias como “traficante evangélico”, “narcopentecostalismo” ou “narcoreligião” não são somente incorretas do ponto de vista da experiência dos meus interlocutores, como incorrem no problema ético de sugerir que tráfico e religião ou pentecostalismo se fundiram, tornando-se uma coisa só.
- Gostaria de citar dois exemplos extraídos da minha pesquisa etnográfica para deixar meu ponto mais claro. O primeiro: um dono da boca de fumo de uma das regiões da Cidade de Deus, mesmo ainda no tráfico e preso, teria mandado retirar estátuas de São Jorge que ficavam em um altar e, em seu lugar, teria incumbido seus comparsas do crime a instalarem um bíblia gigante, com os salmos escritos. Claro, para um observador externo, tal ato poderia logo significar de que tratava-se de um traficante evangélico. No entanto, os crentes, assim como ele próprio, sempre afirmaram que tal traficante não era uma traficante evangélico, mas sim um “traficante de coração aquebrantado”. Segundo eles, um traficante não poderia ser evangélico, porque ninguém poderia ser evangélico e traficante ao mesmo tempo. Cito um outro exemplo. Um dos meus interlocutores de campo estava afastado da igreja. Numa de nossas conversas, ele afirmou: Diogo, eu não sou evangélico. E eu logo perguntei: mas você não acredita no que a igreja prega como certo, você não acredita mais em Deus? E ele retrucou: sim, claro que acredito, mas para ser evangélico eu preciso praticar aquilo que eu acredito. Se faço coisas que a igreja condena e que eu sei que é errado, eu não posso dizer que sou evangélico.
- Tais exemplos etnográficos me indicam, ao menos a partir do meu contexto etnográfico, que categorias como “traficante evangélico”, “narcopentecostalismo” não descrevem de forma adequada a experiência dos próprios evangélicos – e nem dos traficantes aderentes à cultura pentecostal -, além de incorrerem no risco de sugerir, de forma equivocada, a existência de uma espécie de religião do e para o crime. Claro que tal afirmação que faço se baseia no meu contexto etnográfico. Talvez, em outros contextos, haja pessoas que se autodeclaram “traficantes evangélicos” (que parece ser o caso de Peixão, criador do Complexo de Israel) ou que reconhecem a existência de um “narcopentecostalismo” ou de uma “narcoreligião”. Nesse caso, ficam mais perguntas do que respostas: quais interlocutores reconhecem a existência de um narcopentecostalismo e de uma narcorreligião? Se os há, como eles definem tais noções? Além disso, eu pergunto se há algum pastor evangélico que utiliza a categoria “traficante evangélico”? Se o faz, como ele a define? Dentre pastores que prestam assistência espiritual e ajuda a traficantes, há algum que reconhece ou afirma publicamente que tais traficantes são “traficantes evangélicos”? Quem são os traficantes que se dizem “traficantes evangélicos”? Para além do “Peixão”, há outros casos? Que diferença tais traficantes – e os crentes, se é que há alguns que reconhecem a existência de “traficante evangélico” – fazem entre traficantes evangélicos, evangélicos não traficantes e traficantes não evangélicos? Como são negociadas as fronteiras e a legitimidade de tais autodenominações? Trata-se de um fenômeno isolado, muito localizado ou é algo que tem se ampliado e adquirido uma maior sistematicidade e recorrência? Que igreja aceita e acolhe tal categorização?
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* Diogo Silva Corrêa é autor do livro “Anjos de fuzil: uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus”. Professor visitante da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade de Vila Velha e coordenador do Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) da UVV/UFPE.
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