O Brasil, embora concentre cerca de 12% da água doce superficial de todo o planeta, enfrenta uma crise que ameaça a biodiversidade, a economia e a qualidade de vida de milhões de pessoas. Em vez de representar prosperidade, a água, em muitas regiões do país, se tornou um reflexo de desigualdades sociais, problemas estruturais e de saúde pública e dos impactos das mudanças climáticas.
Dados do MapBiomas Água revelam uma perda expressiva na superfície de água no Brasil, com uma redução de 15% desde os anos de 1990 em quase todas as bacias hidrográficas. Regiões como a Bacia Amazônica – que concentra mais de 62% da água doce superficial no país – e o Pantanal agora sofrem com secas extremas e redução significativa de volumes de água, em grande parte devido ao desmatamento e às mudanças no uso do solo de florestas e matas nativas para monoculturas e pastagens exóticas.
O problema da água no Brasil, no entanto, não se limita à quantidade. Mesmo na Mata Atlântica – bioma que reúne o segundo maior volume de água do país, 12%, e que aparenta ser uma exceção por não registrar perdas significativas de espelhos d’água – os desafios são evidentes. Isso porque a maior parte dessa água está represada em reservatórios de hidrelétricas, hidrovias e represas de abastecimento, o que compromete sua qualidade e reduz a disponibilidade para usos múltiplos essenciais. A combinação da degradação ambiental decorrente da falta de tratamento de esgotos e o aumento das temperaturas intensifica ainda mais os impactos, gerando um cenário crítico de contaminação.
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A deterioração da qualidade hídrica é um dos aspectos mais alarmantes, especialmente em regiões onde a escassez já é realidade. Dados do projeto Observando os Rios, da Fundação SOS Mata Atlântica, apontaram que 70% dos 193 rios monitorados no ano de 2023 apresentaram qualidade de água regular. Essa condição precária de qualidade é muito suscetível aos impactos do clima.
Outro fator que agrava a situação em diversas bacias hidrográficas da Mata Atlântica é a intrusão de água salgada, que está transformando áreas antes dominadas por água doce. Na foz dos rios São Francisco, Paraíba do Sul e Doce, a redução do volume vem permitindo o avanço da cunha salina, o que torna essas áreas inadequadas para consumo humano e prejudica atividades econômicas essenciais (como a agricultura e a pesca, por exemplo).
E, mais uma vez, não podemos culpar apenas as mudanças climáticas. A crise que vivemos é uma consequência direta da gestão inadequada dos recursos hídricos, agravada pela ausência de políticas públicas robustas e pela falta de integração entre as iniciativas voltadas para a conservação ambiental, pelo desmatamento e precários índices de saneamento básico.
Os impactos da crise hídrica recaem de maneira desproporcional sobre as populações mais vulneráveis. Comunidades ribeirinhas, moradores de áreas periféricas, migrantes climáticos e pessoas em situação de rua enfrentam barreiras quase intransponíveis para acessar água limpa. São milhões de brasileiros expostos a condições insalubres que comprometem sua saúde e dignidade. A negligência histórica em garantir o acesso universal à água é agravada pela ausência de um reconhecimento legal desse direito como fundamental. Embora o Brasil seja signatário de resoluções internacionais da ONU que tratam do acesso à água potável como um direito humano, essa garantia ainda não foi incorporada à Constituição Federal.
É urgente reconhecer que a crise hídrica está diretamente ligada à destruição das florestas, que são essenciais para regular o ciclo da água. Elas ajudam o solo a reter e absorver a água da chuva, evitando que escorra rapidamente para os rios – o que causa assoreamento e deslizamentos. Quando a cobertura florestal é removida, o solo perde fertilidade e essa capacidade de infiltração. As consequências disso são o aumento do risco de enchentes em períodos de chuva intensa e o agravamento da escassez de água durante as secas. A falta de florestas também prejudica o ciclo hidrológico fluxo, fazendo com que os rios deixem de ser perenes, ou seja, passem a secar em algumas épocas do ano.
Esse foi um importante ponto que levamos para as discussões na COP29, em Baku, onde o Brasil destacou a restauração florestal como um elemento-chave de sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). A conexão entre florestas e recursos hídricos, no entanto, exige mais do que compromissos formais. É necessário implementar ações concretas que integrem tecnologia e soluções baseadas na natureza, promovendo, assim, uma abordagem que alinhe conservação ambiental, desenvolvimento econômico e justiça social.
Os debates internacionais ressaltam a urgência de medidas estruturais no Brasil. A mudança, entretanto, também depende de uma transformação interna. A crise hídrica evidencia a necessidade de que, como recomenda a ONU e a Unesco, seja proibida a construção de novas barragens que comprometam rios e ecossistemas aquáticos.
A audiência pública realizada em 10 de dezembro, na Câmara dos Deputados, para discutir essa questão representou um passo importante para consolidar uma governança mais participativa e sustentável dos recursos hídricos. No entanto, essas iniciativas precisam ser complementadas por ações de maior alcance – como o fortalecimento de redes de monitoramento, o investimento em tecnologias de reutilização de água e a promoção de práticas agrícolas mais sustentáveis.
O Brasil tem a oportunidade de liderar pelo exemplo e mostrar que desenvolvimento econômico e sustentabilidade não são objetivos opostos, mas interdependentes. A água, além de ser um recurso essencial à vida, é símbolo de regeneração e resiliência. Reconhecer o acesso à água limpa como um direito humano na nossa Constituição é um passo fundamental, mas apenas o começo de uma jornada que exige planejamento, compromisso e ações integradas.
Que os debates iniciados na COP29 deságuem num Brasil mais justo, determinado e preparado para os desafios que teremos pela frente.
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