A piora dos indicadores clínicos e epidemiológicos, a ampliação da desigualdade e o aumento dos gastos diretos da população com saúde serão as principais consequências de eventuais cortes de investimentos públicos na área. Especialistas do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) defendem caminhos para a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e alertam para os riscos de se flexibilizar o piso constitucional da saúde, um dos alvos do incerto pacote de corte de gastos que domina manchetes econômicas nas últimas semanas.
De acordo com o arcabouço fiscal (Lei Complementar 200/23), o Executivo deve destinar uma parcela mínima dos recursos públicos para investir em saúde: 15% da receita corrente líquida. Uma das saídas para equilibrar as contas públicas em debate entre o presidente Lula e ministros é fazer com que os pisos da saúde e da educação (hoje 18% da receita proveniente de impostos) sejam ajustados conforme os limites de gastos do novo arcabouço fiscal. Isso significa que as despesas não podem ultrapassar 2,5% de crescimento em relação à inflação.
Após diversas reuniões entre o presidente Lula e seus ministros, o governo não chegou a um entendimento sobre os cortes orçamentários. As discussões devem ter um desfecho, ao menos dentro do Executivo, nos próximos dias.
“É preciso descontruir o mito de que o governo gasta muito com saúde e programas sociais. O gasto público per capita com saúde é tão reduzido que não conseguimos sequer enfrentar as disparidades regionais e sociais”, afirma a médica sanitarista Cláudia Travassos (Fiocruz), diretora-executiva do Cebes e especialista em avaliação de sistemas e serviços de Saúde.
Cronicamente baixo, o investimento federal per capita, que representa quase metade dos recursos da área, caiu com a Emenda Constitucional 95/2016. O congelamento dos gastos retirou R$ 64 bilhões nominais do SUS entre 2018 e 2022, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Inversão de valores
Publicidade“O aumento de investimentos é fundamental para ampliar a oferta de serviços, especialmente na Atenção Primária à Saúde (APS), que é a base de um sistema universal”, afirma Cláudia. O Brasil tem hoje um sistema híbrido. Um em cada quatro brasileiros tem plano de saúde. A renúncia fiscal redireciona recursos para serviços privados, gerando uma situação insólita: a saúde dos brasileiros mais ricos custa mais aos cofres públicos do que a dos mais pobres.
Em audiência pública nesta semana na Câmara, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, foi questionada por deputados sobre eventuais cortes de recursos orçamentários na saúde. “Como quem trabalha na saúde há muitos anos e boa parte da população sabe, o SUS é subfinanciado no Brasil”, disse Nísia Trindade. Ela ressaltou que cabe apenas ao presidente Lula a decisão sobre o ajuste fiscal, mas ponderou que o governo trabalha com “visões de prioridade e responsabilidade”. “O presidente Lula assumiu o governo exatamente com compromisso de avançar nesse orçamento”, completou. O governo deve continuar as discussões sobre o ajuste fiscal na próxima semana.
O economista Carlos Ocké (Ipea) é crítico em relação a uma eventual flexibilização do piso da saúde. O pesquisador observa que, quanto menor a renda, maior a proporção dos gastos da família com saúde. “Se olharmos as pesquisas sociais empíricas, os gastos com Saúde são regressivos. Ou seja, as famílias mais pobres são aquelas que gastam uma proporção maior da sua renda com Saúde. É uma demanda inelástica. Idosos e doentes crônicos vão gastar o quanto for preciso, até o limite de suas rendas, com remédios, por exemplo”, explica.
“Os investimentos públicos em saúde no Brasil representam apenas 4% do total, enquanto as famílias já arcam com 5,7% dos seus rendimentos, um reflexo da crescente privatização do sistema de saúde”, afirma o pesquisador, que integra o conselho consultivo do Cebes. Para Ocké, essa disparidade é mais um indicador de que a solução não passa pela redução, mas pela ampliação do financiamento público. “A redução dos gastos públicos forçaria famílias e empregadores a arcarem com custos ainda mais elevados, reduzindo o acesso à saúde, especialmente entre as camadas mais vulneráveis da população”, alerta Ocké.
“Os dados empíricos demonstram que o gasto público em saúde é muito mais eficaz que o privado, no Brasil e no mundo”, afirma o economista do Ipea. A necessidade de obter receitas pressiona por um aumento sistemático dos custos de hospitais e clínicas privadas. As ações de preventivas e de promoção da saúde, incipientes no setor privado, contribuem para a interrupção da trajetória de custos presentes, a médio prazo.
“Quando se avalia o impacto do valor gasto sobre a mortalidade infantil, expectativa de vida, cobertura vacinal e outros indicadores básicos da saúde, a eficiência do setor público fica evidente”, reforça o médico sanitarista José Noronha, integrante do conselho consultivo do Cebes.
Participação popular
“Há semanas, a mídia e o mercado financeiro pautam o corte de gastos e equilíbrio fiscal. Neste debate, onde estão as confederações, as centrais sindicais, os conselhos que representam setores importantes da sociedade?”, questiona a vice-presidente do Cebes, Lenaura Lobato (UFF). “O dinheiro é produzido pelo conjunto da sociedade, que precisa ser ouvida”.
“Os direitos sociais constitucionais estão sob ameaça de cortes, mas pouco se discute onde estão, de fato, os gastos públicos. A renúncia fiscal, por exemplo, atinge patamares absurdos. Só a Confederação de Agricultura tem uma isenção de R$ 60 bilhões. Taxar parte dos rendimentos dos 250 mil contribuintes milionários poderia gerar R$ 62 a 90 bilhões por ano”, afirma Lenaura.
Excepcionalizar os investimentos em saúde, retirando-os do teto de gastos, poderia garantir mais recursos para o SUS sem comprometer a saúde financeira do país, na avaliação de Carlos Ocké. O economista pondera, ainda, que o gasto em saúde tem um efeito multiplicador na economia, com impacto positivo no PIB e na geração de empregos.
Para José Noronha, o Brasil precisa urgentemente revisar sua política de renúncias fiscais e taxa de juros. “Pagamos hoje R$ 1 trilhão em juros e encargos da dívida interna. Diminuir a taxa de juros tem um impacto neste custo e no investimento produtivo”, afirma.
“Não sabemos qual será o desenlace, mas o governo está aparentemente resistindo à pressão por cortes de gastos sociais”, avalia Claudia Travassos. “É um momento de disputa, uma disputa muito crucial. O Lula tem sido hábil em diversificar essas responsabilidades, convocar outros ministérios, discutir taxação de lucros e desoneração”, avalia. “Acima da dívida pública, da responsabilidade fiscal e da austeridade, está a imensa, urgente e indecente dívida social, que não pode ser negligenciada”, conclui o presidente do Cebes, Carlos Fidelis, historiador e pesquisador da Fiocruz.