Preso na noite de quarta-feira (28) por descumprir medidas cautelares impostas a ele em dezembro de 2022, o deputado estadual Capitão Assumção (PL-ES) gravou um vídeo em que narra uma fábula sobre os acontecimentos políticos do país nas últimas décadas. Embora não cite nomes, as imagens sobrepostas não deixam margem para dúvida: o deputado culpa os chefes da Aeronáutica e do Exército pelo fracasso da tentativa de golpe para manter Jair Bolsonaro no poder e impedir a posse do presidente Lula. O texto é de autoria de um piloto que escreve em vários blogs de direita.
O vídeo começou a circular em grupos de extrema-direita este mês. Mas já estava no perfil do TikTok do deputado, em clara contrariedade a uma determinação judicial. Capitão Assumção está proibido de usar as redes sociais desde dezembro de 2022, quando passou a usar tornozeleira eletrônica. A violação à determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), é o principal motivo da prisão do deputado.
Assista ao vídeo aqui:
Mesmo com a proibição expressa pelo magistrado, o parlamentar manteve-se ativo nas redes sociais, como em seu perfil no Instagram, no qual recentemente publicou fotos e vídeos da manifestação do ex-presidente na Avenida Paulista, e no TikTok.
No mundo animal descrito pelo deputado bolsonarista, Lula é um “rato”; Bolsonaro, um “leão”; os ministros do Supremo Tribunal Federal, “abutres”; o ex-chefe do Exército (general Freire Gomes), uma “onça que virou gatinho medroso”, o ex-comandante da Aeronáutica (tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior), um “pombo daqueles que cagam em tudo”, o ex-ministro da Defesa (general Paulo Sérgio Nogueira), um “avestruz”. Também sobrou para o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) chamado de “veado”, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tratado como “jumento”, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, comparado a um “porco”. Todos têm suas imagens mostradas ao longo das citações feitas pelo deputado na gravação.
PublicidadeNo vídeo, o deputado Capitão Assumção diz que o “leão” tentou interferir na “lei da floresta” para impedir o avanço dos “ratos”, mas não teve o apoio dos pássaros (Aeronáutica) nem das onças (Exército).
“O leão [Bolsonaro] não queria intervir na lei da floresta, mas algumas decisões foram tomadas para impedir o avanço dos ratos. O leão consultou as onças [Exército], os patos [Marinha] e os pássaros [Aeronáutica] sobre a possibilidade de intervir. Mas, infelizmente, as onças não eram as mesmas de antes, haviam se transformado em gatinhos medrosos. Os patos até tentaram, mas sozinhos não poderiam fazer nada. Já os pássaros, que lástima, não havia entre eles um líder que tivesse coragem de águia. Não passava de um pombo, daqueles que cagam em tudo, não cantam e só enchem o saco. O líder das aves era uma avestruz, que enterrou a cabeça no buraco do chão. Deixaram o leão sozinho”, diz em um dos trechos. “O leão, triste, foi para uma floresta distante [Flórida, nos Estados Unidos]. Enquanto isso, o rato voltou a roubar”, acrescentou.
Em tom de ameaça, o deputado Capitão Assumção diz que o leão voltará: “Deus, olhando com tristeza tudo isso, falou um dia: ‘leão, você haverá de voltar e mais forte. Você vai rugir mais forte e a floresta vai reagir. E cada um dos animais que ajudou a destruir minha criação vai pagar caro por isso, inclusive os que te traíram ou que se acovardaram. Que minha justiça seja feita, e não a dos abutres. E todos os animais se animaram, porque Deus é Deus”.
Depois de ter acesso ao vídeo por meio do Congresso em Foco, o senador Randolfe Rodrigues diz que processará Capitão Assumção pelas falas ofensivas. A reportagem procurou o Ministério da Defesa para comentar as declarações do deputado, assim como a defesa do ex-presidente Bolsonaro, mas não teve retorno. O gabinete de Assumção não quis se pronunciar.
O texto lido pelo deputado, intitulado de “A Fábula da Floresta: os ratos do mal… A história que contarei para meus netos”, é de autoria de Marcelo Rates Quaranta, que se identifica como piloto de aeronaves, escritor e articulista no portal bolsonarista Jornal da Cidade Online. O artigo em questão, que sugestiona uma tentativa de interferência do “leão” na “lei da floresta” sem apoio das Forças Armadas, foi publicado em março de 2023, antes da divulgação do vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro obtida na Operação Tempus Veritatis. Antes também da delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, que apontou a discordância dos comandantes da Aeronáutica e do Exército como empecilho para o andamento do golpe. A reportagem tentou contato com Marcelo pelo canal de atendimento do Jornal da Cidade Online, mas não teve resposta ainda.
O espaço está aberto para manifestação dos citados nesta reportagem.
Pré-candidato a prefeito de Vitória, Assumção tenta tirar proveito do episódio, posando como vítima de censura e perseguição da Polícia Federal do governo Lula e de ministros do Supremo Tribunal Federal, conforme sugeriu o presidente do PL no Espírito Santo, senador Magno Malta (ES).
Segundo o advogado criminalista Berlinque Cantelmo, no vídeo há “uso indevido de uniforme, insígnia e distintivo para convalidação de discurso de autoridade”, uma violação que fica sob a jurisdição da Justiça Militar. Ele também aponta que há injúria, calúnia, difamação e misoginia na fábula lida por Capitão Assumção. “A primeira-dama Janja é atrelada a um termo pejorativo que remete à figura feminina ao ser chamada de ‘galinha’”, exemplifica.
Ele acrescenta ainda que além dos crimes apontados no vídeo a própria divulgação e materialização do vídeo incorrem em descumprimento da medida cautelar imposta por Alexandre de Moraes de proibição do uso de redes sociais desde dezembro de 2022.
Para o advogado Cláudio Castello de Campos Pereira, o vídeo do parlamentar também apresenta incitação ao crime, apesar de implícita pelas metáforas. “Algumas interpretações podem considerar que a narração, ao criticar severamente o retorno ao poder de determinadas figuras (simbolizadas por animais como o “rato”) e ao mencionar a falha de outros personagens em impedir tal retorno, possa indiretamente incitar ações para mudar o status quo político”, aponta.
Ainda de acordo com Castello, pode-se apontar crimes contra a Segurança Nacional. “Os artigos 22 e 23 dessa lei tratam, respectivamente, da prática de fazer propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem constitucional ou do Estado Democrático e da incitação à subversão da ordem política ou social e é possível enquadrar o vídeo narrado pelo deputado sob estes artigos”.
Deputado da tornozeleira
Desde dezembro de 2022, Capitão Assumção usa tornozeleira eletrônica e está impedido de publicar nas plataformas digitais, de deixar o Espírito Santo e de conceder entrevistas. Essas medidas foram impostas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no inquérito das fake news e dos atos antidemocráticos, do qual o deputado é alvo.
Foi o ministro do STF Alexandre de Moraes quem determinou sua prisão agora, atendendo a pedido do Ministério Público do Espírito Santo. Os procuradores alegam que ele fez transmissão ao vivo e publicou vídeos utilizando diversas contas nas redes sociais TikTok e Kwai. Também denunciam que ele tratou com “escárnio” a invasão e depredação do Supremo em 8 de janeiro de 2023. Citam, ainda, que o deputado debochou do Judiciário ao retirar a tornozeleira e chamá-la de “troféu” durante discurso na Assembleia Legislativa, conforme informações da Gazeta, de Vitória.
O histórico de problemas do deputado estadual com a Justiça é extenso, assim como sua lista de polêmicas.
Em fevereiro de 2023, ele retirou a tornozeleira durante sessão da Assembleia por cerca de quatro minutos. “Só um instantinho que vou tirar um negócio que está me atrapalhando, senão não vou falar direito. Depois eu coloco de novo”, afirmou, ao retirar o dispositivo diante das câmeras da TV Assembleia, que transmitia a sessão.
Assumção chegou a bater o aparelho de monitoramento contra a tribuna enquanto discursava, acusando o Judiciário e o Ministério Público Estadual de tratarem a Assembleia Legislativa capixaba com desdém. Em tom de deboche, chamou a tornozeleira eletrônica de “porcaria”. Ele foi preso em 2017 apontado como um dos líderes da greve ilegal da Polícia Militar no Espírito Santo, crime pelo qual foi condenado posteriormente, em primeira instância, a cinco anos e meio de prisão.