Uma das bases de dados utilizadas na fiscalização de produtos controlados do Exército Brasileiro, o Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições (Sicovem), é de propriedade da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), uma companhia privada, que detém os registros e direitos relacionados ao banco de dados.
Apesar de uma reforma recente, a base de dados ainda é usada pelo Exército, o que é visto com receio por especialistas em segurança pública e em tecnologia da informação. Em 2016, uma auditoria realizada em parte pelo próprio Exército ao Tribunal de Contas da União citou a possibilidade de invasão de hackers ao sistema e vazamento de informações, além de outros problemas.
Criado através de uma colaboração da CBC com uma empresa parceira no Recife, o site do Sicovem está registrado na internet desde o fim de 2006 e até hoje está em nome da companhia, vencendo apenas em 2025. Os dados do domínio foram registrados no NIC.br, associação responsável pela execução dos cadastros de nomes de domínio e alocação de endereços de rede no Brasil.
A CBC, atualmente uma sociedade anônima fechada e subsidiária da empresa de participações (holding) americana chamada CBC Ammo LLC , monopoliza a venda de munições para uso não-militar, além de ser a controladora indireta da Taurus Armas, a maior vendedora de armamentos curtos do país.
O Sicovem, por sua vez, foi criado para atender às exigências trazidas pela Lei 10.826/2003, que criou o Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Delineado na Portaria Normativa nº 581/2006, a base de dados foi inicialmente pensada como um controle eletrônico e informatizado de vendas do fabricante (CBC) para os estabelecimentos comerciais e destes para o mercado civil..
Além desse há outros, como o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), o Sistema de Controle Fabril de Armas (Sicofa) o Sistema de Guia de Tráfego Eletrônica (SGTE) e o Sistema de Controle e Registro de Carros Blindados (Siscab).
Todos integram conjuntamente o Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados (SisFPC), que é gerenciado pela Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC), organização militar subordinada ao Comando Logístico do Exército (Colog), órgão de direção setorial (ODS) do Comando do Exército.
O Sicovem é, dentro desse contexto, um produto de uso restrito
à DFPC, sem integração ou conexão com os demais atores ou sistemas envolvidos nas atividades de fiscalização de produtos controlados.
Uma publicação do Exército Brasileiro, a revista Verde-Oliva n°199, de 2008, explicita a relação com a CBC na gênese do sistema. Em uma nota sobre fiscalização de produtos controlados, o Sicovem é apresentado como estando “em desenvolvimento pela Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), que permitirá o controle de 100% das munições comercializadas no país”.
Três anos depois, em 28 de abril de 2011, durante a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime, na Câmara dos Deputados, o então representante da CBC e hoje presidente da Taurus, Salésio Nuhs, confirmou que a indústria realmente criou três sistemas de fiscalização relacionados a munição, doando-os ao Exército.
“O sistema de rastreamento de munições foi desenvolvido pela CBC, foi custeado pela CBC e feito pelo Exército Brasileiro”, declarou na ocasião, explicando que, há época, não foi previsto orçamento para que o Exército desenvolvesse tais bases de dados. “A indústria os desenvolveu e os doou para o Exército. Os sistemas de controle e domínio do Exército quem desenvolveu foi a indústria, que pagou pelo desenvolvimento, porque a indústria não fabrica sistema, fabrica munição e arma”.
A diretora de Programas do Instituto Igarapé, Melina Risso, estava nessa audiência e lembra bem a situação. “O representante da CBC queria passar uma imagem de que a indústria era a favor do controle de armas e munições e apresentou os sistemas quase como uma benesse que a indústria oferecia ao Estado”
A Companhia Brasileira de Cartuchos não explicitou ao Congresso em Foco quanto custou o desenvolvimento de tais sistemas. Em nota, disse que a reportagem deveria consultar a diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) do Exército Brasileiro.
A reportagem pediu o registro do termo de doação do Sicovem e dos outros sistemas da CBC para o Exército. Os militares confirmaram a posse do banco de dados pela empresa, pontuando que essas bases de dados foram imediatamente disponibilizadas ao Exército Brasileiro desde o início de sua implantação, a partir de 2005.
Entretanto, segundo eles, o Sicovem não era passível de termo de doação, mas sim de acesso irrestrito às informações necessárias da empresa em questão.
“O Sicovem foi gerado e é alimentado a partir de sistemas produtivos de munição. A empresa CBC, atualmente única fabricante de munições registrada no Exército Brasileiro, realizou adaptações nesses sistemas, para atender às exigências estabelecidas pela legislação”.
A nota diz que os sistemas contam com algumas funcionalidades que foram desenvolvidas para atender a demandas exclusivas da CBC. O Exército esclareceu também que todas as ferramentas de controle da fabricação e comercialização de munições, desenvolvidas pela companhia foram imediatamente oferecidas ao Exército Brasileiro desde o início de sua implantação.
“O nível de gerenciamento do Comando do Exército é compatível à sua atribuição, de autorização, fiscalização e controle de toda a produção e o comércio de munições e cartuchos”. A resposta pontuou ainda que as inovações e soluções tecnológicas realizadas pela CBC são de propriedade da empresa, que é detentora dos respectivos registros e direitos.
O que foi respondido, porém, não agradou aos especialistas em segurança pública ouvidos pela reportagem. Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, isso implica falta de transparência. “Quem recebe ‘nível de gerenciamento’ não controla o sistema. Tudo indica que a CBC segue sendo responsável pelo controle do Sicovem, o que para nós é uma questão de grave conflito de interesse”.
A jornalista Cecília Oliveira, diretora do Instituto Fogo Cruzado, entidade que faz um compêndio de dados sobre violência armada urbana no Brasil, comparou a situação a imaginar que uma empresa de telefonia tivesse desenvolvido um sistema com dados do setor para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que tem como uma das funções justamente fiscalizar a área.
“É imoral, irresponsável e perigoso que uma empresa privada seja a detentora de um sistema que agregue dados de um agente fiscalizador e que são sensíveis para a segurança nacional”.
Um especialista em segurança da informação ouvido pela reportagem e que preferiu o anonimato avaliou que a utilização por terceiro de um sistema desenvolvido e cedido por parte interessada, e que possa vir a exercer algum tipo de controle sobre as ações dela própria poderá, eventualmente, caracterizar algum tipo de conflito de interesse. “Quem cria um projeto conhece este a fundo”.
Outros grupos especializados no assunto vêm há anos chamando atenção sobre esse ponto específico que, por ser muito técnico, acaba muitas vezes passando ao largo das cobertura sobre o tema.
A situação fica ainda mais nebulosa dada às recentes medidas de relaxamento sobre armamentos editadas pelo presidente Jair Bolsonaro, algumas das quais facilitam o acesso a munições, consideradas por quem cobre a área como imprescindível, especialmente no rastreamento desta.
Mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha suspendido a última portaria feita pelo presidente sobre o assunto, o número de armas registradas cresceu de 46 por dia em 2018 para 378. Um aumento de oito vezes. Ao mesmo tempo, a compra de pólvora no Brasil teve um incremento de 46,5% em 2020. Nesse contexto, uma matéria recente do jornal O Globo expôs que o Exército fiscalizou apenas 2,3% do armamento privado.
“Ao mesmo tempo em que ele flexibiliza as regras para aquisição de armas e munições, facilitando o aumento de armas em circulação; ele mina a autoridade do Estado com relação ao uso da força e debilita sua capacidade de fiscalização” examina Melina Risso, observando que diversos decretos reduziram a competência e o escopo das instituições fiscalizadoras.
“Um exemplo é a retirada de produtos da lista de produtos controlados do Exército ou a retirada do poder de autorização do Exército sobre quantidade de armas adquiridas por atiradores e caçadores”.
A CBC também é há anos criticada por descumprir regras que dificultam rastreamento de munições, o que cria um empecilho grave a investigações policiais. O Sicovem é parte essencial desse elo de fiscalização, e muitas reportagens recentes pedem dados do sistema.
“Se existe uma norma para exigir que lotes tenham 10 mil unidades e que as munições sejam marcadas, como temos lotes com mais de 10 milhões de unidades e munições sem marcação?”, questiona Cecília, uma das autoras de uma reportagem que catalogou 137 cápsulas recolhidas após tiroteios no Grande Rio. A maioria (94) foi produzida no Brasil e eram da CBC.
“Eu tentei, por meses, obter informação sobre o lote destas munições. Tentei pela Lei de Acesso à Informação para o Exército, Ministério da Defesa e da Segurança Pública. Recorri a todas as instâncias – e nada. Também pedi direto a CBC, que me negou as inform
ações”, lembra a jornalista, que disse ter terminado a investigação com mais perguntas que respostas. “Temos uma boa legislação e normas sobre o setor. O problema é que ele não é fiscalizado”.
Um exemplo prático dessa dificuldade veio após o assassinato da vereadora Marielle Franco. Um dos projéteis usados no crime teve como origem um lote justamente da CBC que foi vendido à Polícia Federal em 2006 e desviado de forma ainda desconhecida. Munições dessa mesma série, de mais de dois milhões de projéteis, já foram encontradas em diversas cenas de crime.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, através de seu Diretor Presidente Renato Sérgio, avalia que essa situação do Sicovem ter sido criado por uma empresa privada com interesse direto na fiscalização é ambígua. O procedimento, segundo ele, não segue o que seriam boas regras de governança e independência do Poder Público em relação aos seus prestadores de serviços e fornecedores.
Renato, entretanto, aponta que a Lei de Defesa Nacional dá à CBC, pela sua condição de única indústria de munições do país, prioriza o fornecimento de materiais para as FFAA e para as polícias, não caracterizando um desvio e/ou conflito de interesse em si.
“O ideal seria que o sistema fosse doado ao Exército e que este fosse não só o proprietário como também o responsável pela sua manutenção”, afirma, pontuando que, com os novos Decretos que facilitam o acesso às armas e às munições, a situação torna-se mais questionável, pois uma empresa teria informações privilegiadas em detrimento dos demais beneficiários dos decretos.
Até especialistas defensores do armamentismo, como Fabricio Rebelo, do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança Pública (Cepedes) compreendem a desconfiança. Apesar de não poder opinar sobre a operacionalização do Sicovem, o pesquisador avalia que esse é um ponto que tem gerado bastante desconfianças sobre o sistema, “sobretudo porque há um óbvio desconforto pela utilização, no Exército Brasileiro, de um sistema desenvolvido por uma empresa privada, maior interessada no assunto e que tanto luta para não se instaurar uma concorrência no setor de munições no Brasil”.
de auditoria operacional na diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC). Uma das conclusões do relatório foi justamente que os bancos de dados do SisFPC deveriam ser geridos pelo Exército.
“Após a criação do documento digitalizado, é imprescindível que o arquivamento dos dados seja realizado por OM (Organização Militar) especializada, que forneça os equipamentos de armazenagem e a infraestrutura de rede para a conexão remota e o acesso aos arquivos”, diz a peça. O documento ainda deixa claro que as atividades do SisFPC não eram auditadas, seja pelo órgão central (DFPC), seja pelo Centro de Controle Interno do Exército.
Os sistemas da DFPC, incluindo aí o Sicovem, funcionavam também de forma inconstante e insegura, inclusive com possiblidade de ataques de hackers. Havia dificuldades até para identificar quem fez alterações na base de dados, o que aumentava a probabilidade de fraudes.
Já a CBC reiterou que perguntas sobre o sistema devem ser encaminhados ao Exército Brasileiro. O Exército, por sua vez, disse ao Congresso em Foco que nunca registrou eventos dessa natureza no âmbito do SisFPC.
Um dos pontos da auditoria do TCU explicita que os sistemas carecem de regras de governança de TI (Tecnologia da Informação), “a exemplo de regulação mínima para utilização pelas regiões militares, de tutoriais ou de manuais de operação disponíveis, de segurança da informação, de mecanismos que assegurem a autenticidade dos documentos (certificação digital), de disponibilidade e integridade dos dados, documentos e informações armazenados”.
Um especialista em segurança da informação consultado pelo Congresso em Foco compartilhou que, em linhas gerais é fundamental que, antes de ser colocado em produção, qualquer sistema passe por minuciosa avaliação. “Precisa ser aferido de forma confiável e transparente o grau de confidencialidade e integridade garantido à informação por este tratada”
Uma das respostas do Exército ao relatório foi iniciar o desenvolvimento o projeto SisGCorp especialmente para atender às questões apresentadas no campo da fiscalização dos produtos controlados. Segundo uma nota enviada ao Congresso em Foco, eles possuem o controle da documentação e do código-fonte do referido software. Contudo, apontaram que o Sicovem ainda está em uso e será substituído gradualmente.
“SisGCorp é um software desenvolvido especialmente para atender o Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados pelo Exército, em consonância com as normas estabelecidas pelo Departamento de Ciência e Tecnologia, e acompanhamento do Centro de Desenvolvimento de Sistemas”.
O Exército Brasileiro, questionado sobre qual a funcionalidade do Sicovem nesse atual sistema de transição, não respondeu. A Companhia Brasileira de Cartuchos, por sua vez, não disse se teve algum papel ativo no desenvolvimento do SisGCorp tal como teve no do Sicovem.