por Ana Trigo*
A mais recente pesquisa MDA/CNT aponta que os evangélicos continuam torcendo o nariz para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Para 40% deles, o governo atual é pior que o do antecessor Jair Bolsonaro (PL). Mas, não deveriam pensar assim. O noticiário está aí para mostrar que Lula, conhecido por ser um grande negociador político, tem feito inúmeros acordos com as bancadas da Bíblia, da bala e do boi em nome da governabilidade. Bancadas essas que têm interesses em comuns nas áreas educacional, ambiental, indígena, ou nas questões de gênero.
A eleição de Lula lançou o slogan “o Brasil voltou!”. Pois é… voltou para onde? A sensação que fica é que os conservadores estão se sentindo mais confortáveis que no governo Bolsonaro para aprovar suas teses. E não apenas no Congresso Nacional. O que está acontecendo não é nada bom para nós mulheres, cis ou trans. Na minha primeira coluna do ano neste Observatório Evangélico, escrevi como a Lei do Não é Não acabou desfigurada. O que deveria ser algo que traria segurança para as mulheres em bares, restaurantes e baladas, abriu um precedente que ainda custo a entender (ok, eu também não entendo o porquê de Lula dobrar o valor do fundo eleitoral para as campanhas municipais e nem como bolsonaristas continuam reinando na Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, entre outras coisas).
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Parlamentares religiosos se apressaram, incomodados ainda com não sei o quê, e logo trabalharam para que os locais de cultos e eventos religiosos fossem excluídos da lei. Ora, o texto legal é claro: “o protocolo ‘Não é Não’ será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica (grifo meu), para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas”. A deputada federal petista Maria do Rosário, autora da lei, reclamou da repercussão negativa, mas não conseguiu explicar a concessão. Lula nem deu um pio. Eu não sabia que igreja agora vende bebida alcoólica. Acho que preciso deixar a minha condição de desigrejada rapidamente.
As mesmas bancadas agora se articulam para adiar a Conferência Nacional da Educação (Conae), convocada para debater o Plano Nacional de Educação. A pauta da Conae está centrada em analisar de forma crítica alguns pleitos caros aos conservadores, como militarização das escolas, ensino em casa (o chamado homeschooling) e o Escola Sem Partido, por exemplo. E quer dar espaço para o debate de temas como gênero (incluindo questões LGBTQIA+), religião (para além do Cristianismo) e defesa do meio ambiente no espaço escolar, assuntos que os conservadores não podem nem ouvir falar.
A interferência das bancadas da Bíblia, da bala e do boi vai se espalhando pelo país. O povo yanomami continua morrendo, militares são enaltecidos, pastores são afagados com a possível manutenção de isenções tributárias. Lula desconhece, ou se esquece, que muitos pastores e líderes religiosos trabalham de graça para suas congregações. Não recebem salário, nem ajuda de custo para o serviço que prestam para as igrejas e têm outras profissões para pagar suas contas. Nada mais longe do que o dia a dia de luxo e ostentação daqueles que estrilam tanto e que o presidente prefere atender.
PublicidadeA infinita boa vontade de Lula com partidos conservadores do Congresso vai dando asas para os legislativos Brasil afora aprovem bizarrices como as que intimidam as mulheres que buscam o aborto legal. Vejam o que aconteceu na Assembleia Legislativa de Goiás. Os deputados aprovaram uma lei para que “o exame de ultrassom contendo os batimentos cardíacos do nascituro seja apresentado para a mãe, assim que possível”. O governador goiano Ronaldo Caiado (União Brasil), que é médico, sancionou a lei.
Ou a lei municipal de Maceió (Alagoas), aprovada no final de 2023, obrigando a vítima de estupro que tenha engravidado a olhar imagens do feto antes de fazer o procedimento. Ou ainda o que aconteceu na cidade de São Paulo que suspendeu a realização do aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, alegando que o espaço precisava ser usado para “outras cirurgias”.
Além disso, uma denúncia publicada pela revista Marie Claire diz que a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo teria solicitado prontuários das pacientes que fizeram o aborto legal no hospital entre 2020 e 2023. Os profissionais ouvidos pela revista alegam que foram obrigados a repassar as informações, que são sigilosas. E pedir essas informações sem ordem judicial é crime. A mulher que busca o aborto legal já passa pelo sofrimento de uma gestação resultante de violência, ou que pode produzir risco de morte para si ou cujo feto não sobreviverá à vida extrauterina. Mas o sadismo dos conservadores (e de quem apoia suas decisões) não se satisfaz com isso. Eles precisam violentar essas mulheres um pouco mais.
* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
* Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.
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