A declaração do presidente Jair Bolsonaro de que há exagero no levantamento que aponta a existência de 33 milhões de brasileiros famintos no Brasil foi alvo de críticas nas redes sociais e voltou a jogar luzes sobre o estudo contestado pelo candidato à reeleição. Nem mesmo o crescimento no número de pedintes, de pessoas em situação de rua ou vasculhando o lixo atrás de comida sensibilizou o presidente, para quem “fome no Brasil não existe da forma como é falado”.
A realidade ignorada por Bolsonaro foi captada pelo estudo sobre insegurança alimentar realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com execução em campo do Instituto Vox Populi. A iniciativa, batizada de II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), conta com o apoio das organizações não-governamentais Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e do Sesc.
Insegurança alimentar
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No Brasil atual, apenas quatro em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação – ou seja, estão em condição de segurança alimentar. Os outros seis lares se dividem numa escala, que vai dos que permanecem preocupados com a possibilidade de não ter alimentos no futuro até os que já passam fome. O número total de pessoas que não têm o que comer em casa subiu de 19,1 milhões, no final de 2020, para 33 milhões, em abril de 2022, com a pandemia e o abandono de políticas sociais e o aumento da desigualdade social no país, conforme a pesquisa. A fome dobrou nas famílias com crianças de até dez anos nesse período.
A edição recente do relatório mostra que mais da metade – 58,7%, da população brasileira convive com a fome em algum grau – leve, moderado ou grave fome. O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990. Foram feitas entrevistas em 12.745 lares brasileiros, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. O nível de insegurança alimentar foi medido pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), metodologia também utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Perfil dos famintos
A fome tem lugar, gênero e cor. As regiões Norte e Nordeste – justamente aquelas onde Bolsonaro patina nas pesquisas – são mais afetadas. No Nordeste, 21% das famílias vivem em insegurança alimentar; no Norte, 25,7%. O menor percentual é registrado no Sul, 10%. As mulheres são as mais impactadas: 64% dos lares onde falta comida são comandados por mulheres. Brasileiros pretos e pardos constituem 65% do contingente em insegurança alimentar.
A fome é maior onde o chefe de família está desempregado (36,1%) ou tem emprego informal (21,1%) . Nos domicílios em que o chefe da família trabalha com carteira assinada, a segurança alimentar chega a mais da metade (53,8%).
Desde a pandemia, ficou visível o crescimento da população em situação de rua, de pedintes, de pessoas que reviram o lixo em busca de restos de comida em todo o país. Estabelecimentos comerciais passaram a vender produtos como soro de leite, feijão partido, arroz quebrado, ossos, carcaça de peixe e pele de frango.
Paradoxalmente, a fome cresce no campo. No país do agronegócio, até quem produz alimento está pagando um preço alto: a fome atingiu 21,8% dos lares de agricultores familiares e pequenos produtores. A pobreza das populações rurais associada ao desmonte das políticas de apoio às populações do campo, da floresta e das águas, seguem impondo escassez.
Veja a íntegra do estudo (o texto continua após o arquivo):
Mapa da fome
A Organização das Nações Unidas (ONU) recolocou este ano o país no mapa mundial da fome. Um país entra nessa classificação quando mais de 2,5% da população enfrentam falta crônica de alimentos. No Brasil, a fome crônica atingiu 4,1% e, pelo levantamento, a situação no país é mais grave do que a média global.
Entre os problemas que fizeram a fome aumentar no Brasil, os especialistas apontam o aumento das desigualdades, a disparada do preço dos produtos alimentícios, a dificuldade de produção de alimentos e a redução de políticas públicas nos últimos anos.
“Já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013, reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros. As medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante de um cenário de alta da inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulnerabilizados”, avalia Renato Maluf, Coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).
Auxílio Brasil
Bolsonaro minimizou a fome no país em duas entrevistas nessa sexta-feira. “Se eu falar para você ‘não tem fome no Brasil’, como tem gente da imprensa me assistindo aqui, amanhã o pessoal me esculacha na imprensa. Eles não sabem a realidade se existe gente faminta no Brasil ou não. O que a gente pode dizer, se for em qualquer padaria aqui não tem gente pedindo para comprar um pão para ele. Eu falando isso estou perdendo votos, mas a verdade você não pode deixar de dizer e temos um programa para isso”, disse.
A declaração foi dada em entrevista ao podcast de fisiculturistas Ironberg Podcast. O presidente alega que o governo tomou todas as providências para minimizar o quadro, com o Auxílio Brasil, programa social do governo originário do Bolsa Família, que é pago a 20 milhões de famílias pobres. Mais cedo, em entrevista à Jovem Pan, Bolsonaro havia dito que não havia pedintes nas portas das padarias. “Fome no Brasil não existe da forma como é falado. O que é extrema pobreza? É ganhar até US$ 1,9 dólares (sic), isso dá R$ 10. O Auxílio Brasil são R$ 20 por dia. Quem por ventura está no mapa da fome pode se cadastrar e vai receber, não tem fila o Auxílio Brasil”, declarou.