Esta eleição trouxe ao debate mais uma vez a relevância das emendas parlamentares no resultado das urnas, revelando uma realidade que o comodismo conivente e conveniente dos políticos teima em esconder: o efeito corrosivo delas na independência do voto.
Na essência, emendas parlamentares – sejam elas individuais, de bancada ou as conhecidas como “emendas pix” – sequer deveriam existir, quanto mais estar em debate em plena campanha eleitoral. Sim, nem deveriam existir, e as razões são de uma simplicidade cristalina: a destinação de recursos para tal ou qual região é uma decisão TÉCNICA, e não POLÍTICA. Deputados e senadores, ao contrário do que apregoam, NÃO SABEM quais são dificuldades dos municípios onde têm suas bases eleitorais. Não sabem. Por isso não estão capacitados para destinar recursos para tal ou qual obra.
Quem tem essas informações que permitem a boa aplicação dos recursos hauridos dos impostos arrecadados são os técnicos, os especialistas que estudam a realidade social e econômica de cada região. Eles, sim, estão capacitados a indicar com precisão onde é preciso investir para sanar problemas de saúde, de transporte, de emprego, de lazer etc. No jargão popular, eles é que sabem onde o sapato aperta.
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Mas o uso do cachimbo faz a boca torta. As emendas parlamentares inicialmente eram apresentadas, mas o dinheiro só era liberado por autorização expressa do presidente da República. Foi fácil transformá-las em moeda de troca política. “Eu libero o dinheiro se votar a favor de tal ou qual projeto.” Uma aberração institucionalizada, e que piorou ainda mais quando foram criadas as emendas de relator – aquelas em que é praticamente impossível fazer a rastreabilidade dos recursos. Aí virou farra. Farra com o meu, o seu, o nosso dinheiro. Tudo em benefício próprio dos parlamentares, na garantia de suas reeleições ou para consigam alçar cargos mais elevados.
Óbvio que eles passaram a indicar o destino dos recursos a partir de interesses regionais particulares, e não de reais necessidades de cada região. Não à toa o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a liberação desses recursos até que se vote uma alteração que permita o acompanhamento do dinheiro, a fim de que se saiba para onde ele vai, se efetivamente há necessidade de ser liberado e para quê.
O peso das emendas parlamentares ficou muito claro no último pleito. A verba pública que escorre das emendas contribuiu para a reeleição de 90% dos prefeitos das 180 cidades mais beneficiadas com esse tipo de recursos. O que demonstra, igualmente, que a prática clientelista não se resume aos detentores de cargos públicos, mas encontra respaldo no próprio eleitorado, que concorda em trocar o voto por um recurso que tanto pode ser empregado na construção de um posto de saúde como, na maioria das vezes, no financiamento de eventos como shows breganejos, para ficar em apenas um exemplo. Milhões e milhões de reais são gastos dessa forma. E o eleitorado bate palmas! Bate palmas, sim, e ainda elogia de peito estufado: “Esta farra aqui só está sendo possível porque o deputado Fulano mandou dinheiro pra cá! Ô, homi bom! Por isso é que eu voto nele”!
Ao mesmo tempo em que ficou clara a necessidade da pura e simples extinção das emendas parlamentares, ficou igualmente clara a necessidade de se começar efetivamente a investir na educação política. Educação que deve começar pela educação básica, com a criação de disciplinas específicas com essa finalidade. Disciplinas que ensinem desde cedo qual a importância da democracia e do voto livre para seu exercício. Ninguém nasce democrata, ao contrário. A primeira noção que a criança recebe ainda em casa é a do “eu mando, você obedece”.
A sofisticação do voto – que determina o poder da maioria e da negociação na busca do consenso – é conteúdo que se deveria aprender na escola. Lá no bê-á-bá, porque é aí o melhor momento para semear os conceitos básicos da convivência democrática. Alardeia-se aos quatro ventos que não se deve vender o voto, mas ninguém explica o porquê.
Para o eleitor menos esclarecido, vale mais o bordão “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Ou seja: quem dá mais leva meu voto. Outro dia uma amiga que estava numa cidade do interior, no primeiro turno da eleição, arrepiou-se ao ouvir de um senhor, no dia da votação, a pergunta feita candidamente: “A senhora sabe onde é que eu posso vender meu voto? Eu soube que aqui tão comprando, mas não sei com quem é que eu negocio”. Parece brincadeira ou exagero, mas essa é a mais cristalina realidade pelos grotões do Brasil. E as emendas vão precisamente no mesmo rumo. Com elas, deputados e senadores “compram” apoios. E o que é pior: assegurados por um preceito constitucional criado justamente para preservar seus privilégios.
Em um país onde o crime organizado consegue eleger representantes legítimos, como ocorreu em São Paulo, tudo é possível. Lá, segundo detectaram os órgãos de inteligência, 12 pessoas ligadas ao crime organizado foram eleitos prefeitos ou vereadores. Na mesma pisada, deputados e senadores, com suas emendas, sejam elas de bancada, ou sejam elas pax, pex, pix, pox, pux ou lá o que for, distorcem “legalmente” a democracia em proveito próprio. E como são eles que mudam as leis do país – e, portanto, não vão votar contra seus próprios interesses –, fica tudo por isso mesmo.