O Brasil já registra mais de 685 mil mortos pela pandemia de covid-19. Entre 2020 e 2021, a doença já ceifava a vida de mais de 400 mil brasileiros. No mundo inteiro, pesquisadores debruçavam-se sobre como produzir vacinas e conter o avanço da doença. No país, esse esforço era encabeçado pelo Instituto Butantã com a ajuda do governo do estado de São Paulo. A pandemia deixava clara a importância da investigação científica. Mas, o Brasil, ao mesmo tempo que padecia com a doença, via os investimentos em ciência e tecnologia serem reduzidos aos menores patamares desde 2014. Uma situação trágica que, como mostra a série de reportagens que o Congresso em Foco inicia, deixa a ciência brasileira à deriva.
Saiba mais sobre a série:
Sem ciência própria, Brasil não se liberta dos seus grilhões
“Nós podemos alertar que a situação é crítica”, afirma o ex-ministro da Educação e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro. “Prolongando-se a situação, nós corremos o risco de entrar num caminho sem volta”. A afirmação de Janine é um alerta sobre o descaso com o desenvolvimento científico no país que em 2020 e 2021 teve a menor execução orçamentária desde 2014, de acordo com dados do Portal da Transparência, mesmo enfrentando a pandemia do novo coronavírus.
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“Se o governo não continuar investindo dinheiro, ao mesmo tempo que a gente vê dinheiro para áreas que, enfim, não têm a mesma nobreza, a mesma relevância, como o orçamento dito secreto, o Brasil pode perder todas as suas oportunidades”, sentencia Janine, avaliando o impacto dos sucessivos cortes orçamentários voltados às pesquisas científicas no Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro.
Veja a entrevista de Renato Janine Ribeiro ao Congresso em Foco:
PublicidadeProjetos descontinuados
Em consonância com o presidente da SBPC, o epidemiologista e coordenador do Epicovid-19, o maior estudo epidemiológico sobre coronavírus no Brasil, Pedro Hallal, engrossa o coro contra os cortes orçamentários que atingem em cheio as universidades brasileiras, responsáveis por 90% da produção científica no país.
“Pesquisa científica na universidade o orçamento só vem diminuindo. Na extensão, que é quando a universidade se encontra com a comunidade, projetos vêm sendo descontinuados porque não têm como se manter sem o recurso financeiro”, exemplifica Hallal, que é também ex-reitor e professor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel). “O hospital da Universidade Federal de Pelotas, que foi referência no tratamento de covid aqui, sofre com falta de verbas. A mesma mesma política que distribui rios de dinheiro no orçamento secreto para os apoiadores do governo, sucateia as universidades públicas que atendem a todos”, argumenta o pesquisador que já foi reitor da Ufpel.
Veja a entrevista de Pedro Hallal:
Menos da metade do orçamento secreto
E a trágica situação orçamentária da ciência brasileira nos últimos anos não tem previsão de ser sanada no ano que vem. A previsão orçamentária para 2023 prevê um cenário futuro que continuará minguado para a pesquisa e o desenvolvimento científicos no Brasil. Do total do orçamento previsto para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), no valor de R$ 12,5 bilhões, deve-se descontar cerca de R$ 5,3 bilhões referentes à reserva de contingência, além de despesas obrigatórias, juros, encargos e amortização de dívidas. Na prática, o valor disponível para a pasta é de R$ 7,2 bilhões, cerca de 30% a menos que a LOA de 2022, cujo valor é R$ 10.2 bilhões. Trocando em miúdos, o orçamento para a Ciência será menor em 2023. E menos da metade do que está reservado para as emendas RP-9, as emendas de relator, do chamado orçamento secreto, que somam R$ 19 bilhões.
“Essa é uma situação que ocorre há vários anos com corte de verbas à medida que o Brasil entrou em uma crise econômica cada vez mais pronunciada, que os governos Temer e Bolsonaro não conseguiram reverter”, observa Janine. “Então, nós continuamos a discussão mostrando os problemas que isso tudo acarreta, como, por exemplo, laboratórios que estão à míngua, bibliotecas que não são repostas, vagas de professores que não são ocupadas. Tudo isso está muito visível. Como pode ser refeito isso, depende basicamente do orçamento público”, pondera Janine sobre a situação orçamentária.
Criado em 1996 e considerado o principal instrumento público de financiamento de ciência, tecnologia e inovação do Brasil, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) sofreu um duro golpe no apagar das luzes de agosto, quando o presidente Jair Bolsonaro editou uma Medida Provisória que limitou o uso de recursos da entidade. A MP fixou que o FNDCT poderá aplicar apenas 58% do total da receita prevista no ano. A porcentagem da aplicação do orçamento aumenta sucessivamente até 2027 quando então a fundação tornará a contar com 100% do valor.
O Congresso Nacional já havia rejeitado em julho trecho de um projeto que permitiria o bloqueio de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico em 2022.
Recursos dos fundos setoriais
A estrutura orçamentária do FNDCT engloba os Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia, instrumentos de financiamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação criados a partir de 1999. Há 16 Fundos Setoriais, sendo 14 relativos a setores específicos e dois transversais, cujo objetivo é garantir a estabilidade de recursos para a área. De acordo com o PLOA 2023, apenas três fundos setoriais têm previsão de aumento de recursos – o CT Verde Amarelo, CT Amazônia e CT Espacial.
O orçamento para o fomento de atividades de pesquisa e desenvolvimento na região amazônica realizado pelo CT Amazônia teve um incremento de 239,86% em relação à LOA 2022. O recurso provém do mínimo de 0,5% do faturamento bruto das empresas que tenham como finalidade a produção de bens e serviços de informática industrializados na Zona Franca de Manaus.
O fundo destinado a financiar programas e projetos no setor espacial é o segundo com maior previsão de recursos com um aumento de 62,63% em relação à LOA 2022 seguido do fundo destinado a financiar programas e projetos cooperativos entre universidades e estimular, com 52,19%.
Veja abaixo a tabela com a diminuição dos recursos dos fundos setoriais:
“O ataque foi feito”
Em janeiro de 2021, Pedro Hallal escreveu um artigo para a revista científica britânica The Lancet em que alertava para o desmonte da ciência no Brasil. “SOS: a ciência brasileira está sob ataque”, era o título do artigo (leia aqui o artigo, em inglês). O artigo foi publicado na seção de correspondências da revista. No texto, o infectologista enumerava diversos exemplos de descrédito à ciência e ataques a pesquisadores. Uma situação que levou o Brasil a ocupar a trágica condição de segundo colocado em número absoluto de vítimas da covid-19 e terceiro em número de casos.
“Como cientista, eu tendo a não acreditar em coincidências”, escreveu Hallal, lembrando que o presidente Jair Bolsonaro chamou a covid-19 de “gripezinha” e, questionado por jornalistas sobre o aumento do número de casos da doença, afirmou: “E daí? O que vocês querem que eu faça?”. Em outro exemplo citado por Hallal, Bolsonaro falou sobre a vacina: “Se você virar jacaré, problema seu”.
Mais de um ano depois, Hallal afirma ao Congresso em Foco: “A ciência não está mais sob ataque; o ataque foi feito”. Os efeitos desse ataque são o tema da série que se inicia.