O fenômeno do filhotismo na política não é novo. Em um país como o Brasil, ter um sobrenome abre portas, dá prestígio e outras benesses, republicanas ou não. Em Pernambuco, no entanto, as candidaturas com mais chances de vitória para o governo do estado – atestada até o momento por pesquisas – são todas ligadas a grupos políticos familiares. É como se Família Imperial Brasileira, hoje destronada, descesse do salto da realeza, se dividisse em ramos e disputasse o governo do estadual.
Conforme a última pesquisa do Ipespe, divulgada na última segunda-feira (4), aparecem como os candidatos mais competitivos a deputada federal Marília Arraes (Solidariedade), com 29% das intenções de voto, seguida de Raquel Lyra (PSDB), com 13%, e Anderson Ferreira (PL), com 12%. O deputado federal Danilo Cabral (PSB), candidato da situação, tem 10%, seguido de Miguel Coelho (União BR), com 9%.
Marília Arraes, que ocupa a liderança, é neta do ex-governador e ex-deputado federal Miguel Arraes, além de prima do também ex-governador e ex-deputado federal Eduardo Campos. O vice de Marília pertence a outro clã: o deputado federal Sebastião Oliveira (Avante) é sobrinho do ex-deputado federal Inocêncio Oliveira, parlamentar que se orgulhava de ocupar cargos da Mesa Diretora desde o ano de 1989.
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A vice-líder na disputa também tem suas origens políticas familiares: Raquel Lyra, ex-prefeita de Caruaru, é filha do ex-governador João Lyra Neto e sobrinha do ex-deputado federal e ex-ministro Fernando Lyra. A vice de Raquel, a deputada estadual Priscila Krause (União BR) é filha do ex-governador e ex-ministro Gustavo Krause. O terceiro lugar na disputa, o ex-prefeito Anderson Ferreira, é filho do deputado estadual Manoel Ferreira, que coleciona mandatos na Assembleia Legislativa.
A árvore genealógica também beneficia o deputado federal Danilo Cabral (PSB). Mesmo sem sobrenomes de peso, ele é o candidato oficial do grupo liderado pela família Campos nestas eleições. Em Pernambuco, após a morte do ex-governador Eduardo Campos, o PSB é liderado pela viúva Renata Campos, que, em 2020, conseguiu eleger o jovem prefeito João Campos para Prefeitura do Recife, desbancando nomes internos do partido como o deputado federal Felipe Carreras (PSB).
O ex-prefeito de Petrolina Miguel Coelho, que figura na quinta colocação da pesquisa, também vem com um DNA de peso: além do parentesco com o ex-governador Nilo Coelho, é filho do ex-ministro e ex-líder do governo, o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB). Alguns parentes de Miguel, como o ex-deputado Guilherme Coelho, tiveram mandatos destacados na Câmara.
O cientista político Lucas de Aragão, sócio da Arko Advice, diz que o fenômeno de familiares na política não é novo – ele cita, por exemplo, os casos do ex-prefeito de Salvador ACM Neto (neto do ex-senador Antônio Carlos Magalhães), no Nordeste, e o ex-prefeito de São Paulo, Bruno Covas (neto do ex-governador Mário Covas), no Sudeste. “Esse fenômeno acontece por algumas razões. O primeiro ponto é que ter um sobrenome relevante numa política local, principalmente, numa eleição majoritária, que é super fragmentada, com milhares de candidatos”, diz.
“Os eleitores tendem a definir essas vagas perto da eleição. Ter um nome reconhecido já é um ponto de partida bem interessante. Segundo, você não herda só o nome. Às vezes, o reduto eleitoral. Você consegue se capitalizar em cima de coisas feitas pelo seu pai, por alguém de sua família”, completa Lucas.
“Terceiro ponto é que você já entra na política com uma rede de contatos muito avançada. Isso pode ajudar a você se inserir na estrutura do partido com mais facilidade e frequentemente isso resulta numa maior capacidade de acesso aos recursos do partido e outros tipos de apoio, como apoios político”, reitera o cientista político.
Capitania hereditária singular
O professor do curso de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Severino Vicente relata as origens históricas desse fenômeno. Segundo ele, Pernambuco carrega a questão familiar de forma bastante peculiar. O estado teria sido a única capitania hereditária do Brasil Colônia (1500-1808) fundada por uma família. “Pernambuco tem fama de fazer revoluções, mas como uma vez me disse Marco Maciel [ex-vice-presidente da República e pernambucano], elas foram irridentas, não conseguiram seus objetivos”, diz o estudioso.
“A questão que se coloca é porque não vencemos? Talvez porque sejamos complacentes e, afinal, somos todos uma família. Pernambuco é a única capitania que foi fundada por uma família, a família de Duarte Coelho, que veio com mulher, cunhado e agregados. Os filhos de Duarte Coelho não tiveram a fibra de seus pais e nem do seu tio, o Jerônimo de Albuquerque”, relata.
“[Jerônimo de Albuquerque] Este ficou conhecido como o ‘Adão Pernambucano’, pois espalhou filhos por toda a capitania, usando a instituição do cunhadismo. Foi além da capitania e deixou os Albuquerque Maranhão no Maranhão, mas estes vieram para as terras de seu antepassado. Não sei, mas dá para pensar que o cunhadismo pode ter originado o coronelismo, pai do filhotismo. Veja, o coronel Né foi pai de Etelvino Lins [ex-governador de Pernambuco]. Filho de Quelé do São Francisco, Nilo Coelho é tio de Fernando Coelho [senador] e avô de Miguel Coelho [pré-candidato ao governo]”.
O professor Severino Vicente faz uma analogia ao clássico livro do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, ao explicar esse fenômeno eleitoral no estado. “Entendo isso como um processo de casa grande sendo ocupada pelos clientes. A metodologia do poder é semelhante”.
“Miguel Arraes teve ao seu lado a formação do PSD de Agamenon Magalhães e Barbosa Lima Sobrinho [ex-governadores de Pernambuco], e o contato com um dos clãs do açúcar [foi cunhado de Cid Sampaio] e sempre conversou com os coronéis, desde Veremundo Soares [cidade de Salgueiro], ao médico Inocêncio Oliveira [Serra Talhada] até o Chico Heráclito de Limoeiro e Severino Farias de Surubim. Sim, é uma questão de família, mas são as famílias que escolhem em quem o povo vai votar”, analisa.
Para ele, ainda falta uma reflexão e crítica da população, que tende a eleger projetos familiares. “O brasileiro ainda não entendeu o que é democracia. E em Pernambuco quem diz defender a democracia são os herdeiros da casa grande. Os baianos são parecidos conosco, mas são bem diferentes na defesa dos interesses da Bahia. Lembre-se, enquanto nossa ‘elite’ se dividia por causa de Suape, os baianos construíram Camaçari, os cearenses ampliaram seu porto, os paraibanos cresceram seu porto e o Recife perdeu o brilho do porto. Assim, Recife caiu em pedaços, como as roupas de quem mora na favela ou no mangue”.