Todo empreendimento, para funcionar bem, precisa ter um organograma, uma detalhada organização de tarefas. A família Bolsonaro atua na política como se tal atuação fosse um empreendimento. No topo da organização, está o presidente Jair Bolsonaro. E abaixo seus três filhos com mandato parlamentar. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) é o seu braço de relacionamento político de fato, com partidos e parlamentares. Não por acaso é agora o coordenador da sua campanha à reeleição. O vereador pelo Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (Republicanos) é o responsável pela sua estratégia de comunicação via redes sociais. E o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o responsável pelas conexões internacionais, com os ideólogos dos movimentos de direita que crescem pelo mundo.
Abaixo dos três, há uma extensa rede de operadores. Funcionários fantasmas. Outros parentes da família e parentes dos demais operadores que atuam nos bastidores. Para recolher parte dos salários de outros funcionários ou para atuar de forma velada em determinadas atividades. Um negócio no qual, por uma década, teve papel de destaque a ex-mulher de Bolsonaro Ana Cristina Siqueira Valle, mãe de Jair Renan, o filho 04 de Bolsonaro. A toda essa organização, foi Ana Cristina quem a batizou de “O Negócio do Jair”, conta a jornalista Juliana Dal Piva, do portal UOL. E foi assim que Juliana batizou o livro que escreveu sobre o esquema, recém-lançado pela editora Zahar.
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“É, sim, um esquema de corrupção e desvio de dinheiro público”, assegura Juliana Dal Piva nesta entrevista ao Congresso em Foco. Em O Negócio do Jair – A História Proibida do Clã Bolsonaro, Juliana relata como Bolsonaro valeu-se da política, colocando também nela seus três filhos mais velhos, para fazer com que seu patrimônio e o de sua família crescessem de um automóvel Fiat Panorama e uma linha telefônica, quando se elegeu pela primeira vez vereador, para a posse de 107 imóveis, dos quais 51 comprados, pelo menos em parte, com dinheiro vivo.
O livro é o resultado das apurações que Juliana, como repórter, veio colhendo desde que começou a cobrir, antes de 2018, o nascimento da candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Uma candidatura que, desde o início, chamava a atenção por ter contornos diferentes. Bolsonaro não tinha um marqueteiro, como os demais candidatos, e construía sua campanha especialmente no uso massivo das redes sociais, de uma forma muitas vezes agressiva, com fake news, desinformação e ataques contra os adversários.
Logo no início, destacou-se nesse sentido a atuação de Tércio Arnaud Tomaz. Oficialmente, ele era então assessor do gabinete de Carlos Bolsonaro na Câmara de Vereadores do Rio. Mas, na prática, trabalhava na campanha de Bolsonaro à Presidência. Arnaud depois viria a ser um dos nomes associados ao chamado Gabinete do Ódio na Presidência depois da posse de Bolsonaro. “Quando explodem as informações do Coafi [sobre o esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro como deputado estadual no Rio de Janeiro], várias coisas que eu vinha apurando começam a fazer sentido”, afirma Júlia, referindo-se a essas conexões e à forma como atuavam figuras como Tércio Arnaud Tomaz.
22 da família de Bolsonaro. 18 de Ana Cristina
Segundo Juliana, além dos funcionários fantasmas, há também muito nepotismo. O próprio Jair Bolsonaro chegou a ter 22 pessoas da sua família trabalhando no seu gabinete e nos gabinetes dos filhos. Ana Cristina Valle chegou a ter 18.
Andréa Siqueira Valle, ex-cunhada de Bolsonaro, irmã da Ana Cristina Valle, afirmou que entregava todo mês R$ 7 mil do seu salário de volta. André, outro irmão, acabou sendo exonerado porque, segundo o relato, não devolveria a quantia certa. “Andréa foi funcionária fantasma da família Bolsonaro por cerca de 20 anos”, diz Juliana.
Hoje, há uma investigação sobre esquema de rachadinha envolvendo Flávio Bolsonaro, que é acusado pelo Ministério Público de peculato, lavagem de dinheiro e de ser líder de uma organização criminosa. Há outra ação por razão semelhante contra Carlos Bolsonaro. E há uma ação civil pública, do Ministério Público de Brasília, contra o próprio Jair Bolsonaro, por causa da história de Walderice da Conceição, a Wal do Açaí, que seria funcionária fantasma do gabinete do hoje presidente quando deputado federal enquanto, na verdade, atuava como uma espécie de caseira na casa de veraneio que ele tem na cidade de Mambucaba, região de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro.
Veja abaixo vídeo com trecho da entrevista:
Segundo Juliana, na primeira campanha política de Bolsonaro, para vereador, ele declarou à Justiça Eleitoral ser proprietário somente de um automóvel Fiat Panorama, de uma linha telefônica e de dois terrenos, que formalmente nos cartórios não constavam.
Depois, em 1995 e 1996, ele comprou a casa em Mambucaba e um apartamento no bairro do Maracanã, no Rio de Janeiro. De acordo com Juliana, é somente depois que ele se une a Ana Cristina Valle que se inicia uma enorme expansão patrimonial. No período em que os dois estiveram juntos, eles compram 14 imóveis, cinco com dinheiro vivo.
Ao mesmo tempo, os filhos entraram para a política. Ele chegou a dizer na época que ia “sarneyzar” o Rio de Janeiro, numa referência a José Sarney, cujos filhos Roseana e Sarney Filho também seguiram na política.
Veja trecho da entrevista:
Para esta eleição em que concorre a novo mandato como presidente, Bolsonaro declarou sua casa no Rio de Janeiro, no condomínio Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca. No mesmo condomínio, ele é proprietário de outra casa, onde vive Carlos Bolsonaro. Ele tem a casa em Mambucaba, que ficou associada a Wal do Açaí. E um apartamento em Brasília. Além de automóveis e aplicações. Seus bens declarados, sem atualização dos valores de mercado, somam em torno de R$ 3 milhões.
“Agora, se juntar os filhos, o patrimônio todo da família, incluindo as irmãs e irmãos de Bolsonaro, a mãe [já falecida] e os três filhos mais velhos, a gente descobriu que eles negociaram ao longo das últimas três décadas 107 imóveis, 51 deles foram negociados parcialmente com o uso de dinheiro em espécie. O valor atualizado desses 51 imóveis é cerca de R$ 25 milhões. O total em espécie nessas negociações soma R$ 11 milhões, em valores atualizados”, afirma Juliana Dal Piva.
“Bolsonaro tenta passar de forma equivocada a ideia de que ele é um homem humilde, com pouco patrimônio e que a família dele é assim também. Essa não é mais a realidade da família Bolsonaro. O senador Flávio Bolsonaro comprou uma mansão de R$ 6 milhões no mesmo mês em que ele foi denunciado também por um desvio de R$ 6 milhões”, continua.
Juliana observa que nem Bolsonaro nem seus filhos têm outras atividades além da política. Somente Flávio Bolsonaro, desde 2015, tem no Rio de Janeiro uma loja de chocolates.
“Ana Cristina Valle, no processo de separação, declarou que Bolsonaro tinha uma renda de mais de R$ 100 mil. Ela não diz de onde vem, mas ela sustenta esse valor. Ele na época recebia um salário de R$ 27 mil brutos como deputado federal e mais cerca de R$ 7 mil, R$ 8 mil, da aposentadoria militar. O restante, que chega aos R$ 100 mil, de onde veio? Mas ela escreve isso. Não me pareceu um equívoco. Ela não corrige em nenhum momento essa informação”, diz Juliana.
A autora do livro rebate as afirmações da família de que não seria verdade que os imóveis foram comprados em parte com dinheiro vivo. Flávio chegou a conseguir por um determinado momento que as duas reportagens a esse respeito feitas pelo UOL deixassem de ser publicadas. A situação foi revertida. O detalhamento da forma como foram comprados os 51 imóveis em que houve uso de dinheiro vivo estão na reportagem “As evidências do dinheiro vivo em cada um dos 51 imóveis”.
“Eles precisavam arrumar uma narrativa, porque explicar mesmo eles não conseguem”, diz Juliana.
Veja o trecho:
Os operadores
Na apuração que fez, Juliana Dal Piva não tem dúvida de que Ana Cristina Valle seria a operadora central do “Negócio do Jair”.
“A Ana Cristina foi uma sócia do Bolsonaro em tudo isso”, diz ela. É no período em que estão juntos como o patrimônio do casal e da família crescem exponencialmente.
“Depois, eles se separam, mas o esquema continua.”, diz ela. É aí que cresce o papel de Fabrício Queiroz, que era assessor no gabinete de Flávio. Ela cita também outros operadores. Como o coronel Miguel Braga, chefe de gabinete de Flávio. Outro militar, Jorge Fernandes, atual chefe de gabinete de Carlos. No gabinete de Bolsonaro, teve papel importante Jorge Francisco, pai do hoje ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Jorge Oliveira. Jorge Francisco morreu em 2018.
“Depois da separação, Ana Cristina não vai mais operar diretamente. Vão ter outros operadores. Mas vai sempre ter uma situação em torno dela de administrar a Cristina. Porque ela sabe muito”, afirma Juliana Dal Piva.
Veja trecho da entrevista: