A apresentação de projeto de lei que penaliza a gestante vítima de estupro em caso de aborto, tratando-a como homicida, foi importante para evidenciar algumas realidades.
Não há como negar que o eleitor brasileiro, aumentando significativamente as bancadas da bala e dos religiosos, fez a opção por um Congresso conservador. Não por acaso, os candidatos, afinal eleitos, apresentaram-se com seus títulos antes de seus nomes — Delegado, Capitão, Pastor, Bispo etc.
É também inegável que, ao não reeleger Bolsonaro, o eleitor deixou claro que há certos limites. Assim, importante pontuar que, apesar do crescimento do que se convencionou chamar de “ultradireita”, há espaço para debate em qualquer tema.
Diante deste quadro, é absolutamente inexplicável que as forças políticas progressistas, que impediram a reeleição de Bolsonaro, permaneçam silentes e permitam que certos temas sejam apropriados pelo conservadorismo — pior que isso, pelo reacionarismo — sem qualquer contraponto.
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As pautas da segurança pública e dos costumes estão sendo dominadas sem contestação pelo que há de mais reacionário no país, o que, evidentemente, traz consequências quase irreversíveis.
Assim é que, apesar da manifestação tímida e quase burocrata do Ministério da Justiça, o governo e sua base no Poder Legislativo aceitaram, sem maior debate, o fim das licenças periódicas de presos em regime semiaberto, chamadas ironicamente de “saidinhas”, além do retorno da obrigatoriedade do exame de cessação de periculosidade para progressão de regime.
Recentemente, em grupo de WhatsApp recebi mensagem alarmante dando conta que no dia de Santo Antônio, última “saidinha”, perigosos criminosos seriam postos em liberdade, pelo que as forças policiais recomendavam que as pessoas permanecessem em suas casas durante aquela semana.
Pensei em responder, negando a veracidade da notícia e esclarecendo que, ainda que fosse mesmo a última “saidinha, não haveria motivo para pânico porque os presos em regime semiaberto, como deveria parecer óbvio, já ficam em liberdade durante o dia.
Não contestei e me arrependo.
É o nosso silêncio que está fazendo que enormes equívocos sejam aceitos como preocupações razoáveis.
A toda evidência, o fim das licenças temporárias não redundará em diminuição na criminalidade. É certo que, de quando em quando, há a notícia de crimes graves praticados por pessoas beneficiadas com saída temporária (a propósito, não há nenhuma estatística a respeito). Ainda assim, ninguém sério pode imaginar que a mudança legislativa terá impacto significativo com uma diminuição dos crimes violentos.
Também na área da segurança, absurdo ainda maior está prestes a ser implementado.
Aproveitando a crise entre o Supremo Tribunal Federal e o Poder Legislativo, tramita pelo Congresso Nacional, PEC que, a exemplo da legislação em vigor, permite o mesmo tratamento penal para traficante e usuário de drogas.
A aprovação de emenda constitucional, como é óbvio, impede qualquer modificação relevante na Lei de Tóxico e perpetuará a injustiça hoje vigente que permite a punição rigorosa e desproporcional de pequenos traficantes.
Mais uma vez, os políticos que se elegeram com discurso progressista, a começar pelo Presidente da República, permanecem em silêncio, temendo perder espaço em setores que já os repudiam.
Essa omissão é injustificável e deve ser cobrada por aqueles que nas urnas votaram justamente para evitar o retrocesso.
Há aqui, no meu sentir, um claro erro de avaliação política.
A omissão não traz qualquer ganho. Ao contrário. Os conservadores, ou reacionários, já fizeram sua opção e os progressistas não estão sendo representados.
O avança das medidas exclusivamente repressivas, como o fim das saídas temporárias e a não distinção clara entre traficante e usuário tem como consequência inevitável o aumento de encarceramento.
Ora, o aumento injustificado da população carcerária implica em aumento de despesas para enfrentar a já calamitosa falta de vagas. Não bastasse isso, a prisão de pessoas não perigosas, como os pequenos traficantes, conhecidos como “mulas”, de fácil reposição, só faz aumentar o poder das organizações criminosas no sistema carcerário.
A aprovação de medidas duras na área de segurança pública animou o reacionarismo a tentar avançar também na pauta de costumes.
Houve espaço para a apresentação (com a inacreditável aprovação do regime de urgência) do projeto de lei que equiparou o aborto ao homicídio.
Mais uma vez, os políticos compromissados com os direitos humanos e com o tratamento igualitário entre os gêneros ficaram covardemente (não há outro termo) quietos.
Foi preciso uma reação da sociedade civil para que o presidente Lula, não sem antes se declarar contra o aborto, certamente temendo a reação dos líderes religiosos, passasse a se declarar contra o projeto, afirmando que se tratava de uma insanidade. Evidente que tais declarações só foram feitas quando ficou claro que o projeto de lei não vingaria.
Em verdade, houve aqui um erro de cálculo.
Empolgados com as vitórias legislativas e com o silêncio da base do governo na área da segurança, os fundamentalistas e reacionários imaginaram que poderiam impor seus conceitos também na pauta de costumes.
Felizmente, houve pronta reação que, insisto, não partiu da classe política.
Fica, portanto, um alerta: é preciso reagir. Sem reação, sem debate, corremos o risco de retrocessos inimagináveis, tais como a aprovação de leis só vigentes em regimes semelhantes aos administrados pelo Taliban.
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