Aumento do tempo de refúgio e diminuição da busca por comida. Esses foram alguns dos principais efeitos causados pela poluição sonora oceânica no comportamento do peixe-donzela (Stegastes fuscus), popularmente conhecido como “donzelinha”, uma pequena espécie que mede, no máximo 20cm.
As descobertas causam preocupação e são da dissertação de mestrado em Biotecnologia Marinha da pesquisadora Aléxia Lessa, que apresentou o estudo ao Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM) e à Universidade Federal Fluminense (UFF). Eis a íntegra (PDF) da pesquisa.
“Os efeitos detectados influenciaram significativamente comportamentos-chave no ciclo de vida da espécie, o que pode gerar efeitos críticos na dinâmica dos recifes como um todo”, escreveu Lessa.
O donzelinha é o peixe herbívoro territorial mais abundante em toda a costa brasileira. Por isso, os cientistas temem que um desequilíbrio no comportamento dessa espécie possa ter consequências mais graves ao ecossistema como um todo.
Leia também
“A paisagem acústica submarina está mudando rapidamente e com isso há uma necessidade urgente de avaliar os impactos dessa pressão antropogênica [causada pelo ser humano] sobre espécies e processos, de modo a fornecer medidas de mitigação desse impacto ainda negligenciado”, diz a pesquisadora.
Entre outros fatores, a urgência das medidas de mitigação está relacionada à proteção da atividade pesqueira e ao próprio turismo. Ironicamente, a exploração turística feita por diversas embarcações, se não for controlada, tende a reduzir a vida marinha. Por sua vez, isso tende a reduzir o potencial turístico de uma região.
PublicidadeO mesmo vale para a pesca: um desequilíbrio dos biomas pode reduzir a quantidade de pescado. Na ponta da linha, a exploração não sustentável atinge o seu prato de comida, os preços dos alimentos ou até os momentos de lazer. Da mesma forma, também impacta a situação financeira de famílias que dependem dessas atividades. Por fim, impacta negativamente a cidade e a região.
Entrevistas e até mergulho em Arraial
O estudo foi conduzido no santuário marinho do município de Arraial do Cabo, estado do Rio de Janeiro, e analisou especificamente o impacto do ruído de embarcações de turismo náutico sobre o peixe-donzela.
Arraial do Cabo fica numa área conhecida como Região dos Lagos, e as suas praias têm algumas das águas mais cristalinas do país, daí o apelido de “Caribe Brasileiro”.
Essa característica torna o local perfeito para pesquisas marinhas, assim como para a exploração turística. A própria dissertação de Lessa diz que a quantidade e a frequência de embarcações turísticas é crescente, “principalmente em épocas de alta temporada”.
Esta reportagem foi até Arraial para entender o problema, fazer entrevistas e até mergulhar de cilindro de oxigênio. Isso ocorreu com apoio do Earth Journalism Network por meio do programa “Reporting on Marine Pollution”, no qual o jornalista Maurício Ferro, criador do Correio Sabiá, foi um dos nove selecionados no mundo.
Para causar mais impacto e ampliar a conscientização sobre a poluição sonora marinha, o Correio Sabiá e o Congresso em Foco fizeram uma parceria para publicação conjunta (ao mesmo tempo) desta reportagem. 🤝
Ao registrar as descobertas, a reportagem usou uma câmera esportiva GoPro, que permite filmagens de alta qualidade embaixo d’água. Foi também com esse acessório que realizamos as entrevistas para produção da reportagem multimídia.
Assista ao documentário Ocean Noise Pollution:
Pesquisa inova ao compreender efeitos do som em peixes pequenos
Para fazer o estudo, Lessa foi a campo estudar o comportamento do donzelinha. Ela conta que fez mergulhos (neste caso, não houve necessidade de cilindro, porque a espécie vive em ambientes recifais rasos) para introduzir hidrofones, submetê-los ao som e registrar as consequências com câmeras também colocadas embaixo d’água.
“A gente coloca a câmera bem na frente do território dele, da donzelinha, e deixa a câmera gravando. Depois a gente recolhe todo o equipamento e, em laboratório, a gente consegue contabilizar, ver o que aconteceu”, explicou.
Como resultado, Lessa disse que o ruído dos barcos afeta dois principais comportamentos: alimentar e refúgio. Os peixes, quando eram submetidos ao som, se recluíam. Ou seja, passavam mais tempo se refugiando nas suas “tocas” e, consequentemente, diminuíam sua atividade de alimentação.
“Um outro comportamento que a gente avaliou foi a agressividade, que a gente chama de comportamento agonístico. Eles [donzelinha] literalmente batem nos outros peixes [com cabeçadas] para afugentar eles do seu território, e a gente conseguiu ver justamente uma interferência nesse comportamento. Por passarem mais tempo se escondendo, eles deixam de defender o território, defender o ninho, e também de se alimentar”, contou Lessa à reportagem.
Professor associado no Departamento de Biologia Marinha da UFF , Carlos Eduardo Leite Ferreira é um dos maiores especialistas da área ecológica marinha no Brasil. Ele afirmou que “a comunicação toda de peixe é com som”, por isso, “qualquer som que atrapalhe isso [comunicação] vai causar problema no ciclo de vida de peixe”.
“Dentro do ciclo de vida estamos falando aí de reprodução, principalmente, que é o mais importante, mas outras interações sociais que levam à reprodução e mesmo predação. O bicho, para fugir da predação, tem que escutar tipos de som para fugir. Então, [a poluição sonora marinha] afeta toda a parte de reprodução e também de forrageamento de comida. (…) Principalmente para peixe, afeta o ciclo de vida total do peixe, e a gente conhece muito pouco [do assunto], acrescentou Cadu, como é conhecido.
Oceanógrafa e doutoranda em Biotecnologia Marinha, especialista em Inteligência Artificial aplicada à Ecologia Acústica (IEAPM/UFF), Viviane Barroso, destacou outro detalhe da poluição sonora: a frequência dos ruídos causados pelas embarcações.
“Os ruídos de embarcações geralmente são produzidos em baixa frequência, e essas baixas frequências geralmente são a mesma faixa de frequência de organismos marinhos, como os peixes, por exemplo. Então, isso pode causar uma sobreposição de sons, mascarar os sons que são importantes para a comunicação desses organismos e afetar a reprodução dessas espécies”, disse.
O que é poluição sonora oceânica
Para ter melhor entendimento do impacto do som na vida de uma espécie marinha, pode ser interessante traçar uma situação análoga em terra. Imagine, por exemplo, quando uma obra começa num momento em que é preciso ter concentração.
Neste caso, é normal pensar que uma pessoa possa fechar as janelas de um cômodo ou até se retirar de determinado local, fora o estresse que deve sentir. Isso também se passa com os animais, interferindo no ecossistema.
“Em Arraial do Cabo tem um ponto de mergulho chamado Enseada do Gato (…) e lá é rota de travessia [de embarcações]. (…) Por conta desse fluxo de embarcações, o ruído embaixo d’água, o som dos motores, é muito frequente”, contou o instrutor de mergulho em Arraial do Cabo Ronnie Tavares.
“A gente opta por não fazer esse ponto de mergulho não pela falta de vida marinha, que é bem abundante lá, mas porque o som do barco acaba sendo muito constante e incomoda nós mergulhadores. Isso me faz pensar um pouco que a vida marinha também acaba se sentindo incomodada por esse mesmo fator”, acrescentou.
Já o Dr. Fabio Contrera, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia Marinha (PPGBM), do IEAPM, lembrou que há a poluição causada pelas embarcações, mas também outros tipos de ruído que também interferem no ambiente.
“Se for na praia agora, vai ter a influência de ruído de navio de uma distância bem longa. Então está ali, um ruído acumulado, mas a gente tem outros ruídos: ruído de obras, ruídos de equipamentos que estão no navio, sem ser aqueles que fazem o navio andar, outros equipamentos”, contou.
Medir para apontar soluções
Uma das grandes novidades da pesquisa de Lessa é conseguir medir o impacto do som num peixe relativamente pequeno, que pode chegar a no máximo 20cm, mas costuma ser encontrado de 14cm a 16cm já em fase adulta.
Até então, os efeitos da poluição sonora em animais marinhos eram mais conhecidos nos cetáceos (baleias e golfinhos, por exemplo). Ao mensurar o quão nocivos podem ser os ruídos causados pelo ser humano (ruídos antropogênicos) para a biodiversidade oceânica, a pesquisa ajuda a pensar em soluções. Entre essas soluções está o possível estabelecimento de normas para as rotas de navegação ou a frequência do tráfego.
“Nossos resultados são importantes para auxiliar regras locais de manejo do tráfego de embarcações, além de auxiliar na elaboração de normativas marinhas”, disse Lessa.
Até o momento de publicação desta reportagem, o Brasil ainda não tinha leis específicas para limitar a poluição sonora oceânica.
O que existia por aqui eram apenas orientações técnicas do Guia de Monitoramento da Biota Marinha, de 2018, feito pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), principal órgão de fiscalizacão ambiental.
No entanto, o Guia englobava apenas as atividades de sísmica (neste caso, trata-se de prospecção sísmica; o mapeamento do fundo oceânico usado na indústria de óleo e gás). Para isso, definem uma distância ou até a interrupção dos disparos de airgun em caso de avistamento ou detecção acústica de cetáceos e quelônios.
Por outro lado, atualmente, o mesmo Ibama tem solicitado estudos e programas de monitoramento acústico para obras marítimas e licenciamento de algumas operações offshore, como é o caso do pré-sal.
“O pré-sal tem um programa enorme de monitoramento da paisagem acústica submarina, que foi uma das condicionantes para licença”, ressaltou Fábio Contrera.
Já a Europa tem avançado na regulação da poluição sonora marinha. Recentemente, definiu limites de velocidade, manutenção de hélices e motores, melhores projetos de barcos, etc. Para Contrera, o Brasil deve ir na mesma direção. “Esse é o caminho natural para qualquer país”, defendeu.