A força política de policiais civis, federais e militares, bem como de quadros das Forças Armadas, seguiu um padrão de ascensão nas últimas disputas eleitorais. Entre 2014 e 2022, as categorias passaram de sete para 44 representantes na Câmara dos Deputados. Nas eleições municipais de 2020, profissionais de defesa e segurança alcançaram 50 prefeituras e 809 cadeiras em câmaras municipais.
Nada indica uma queda nessa tendência nas eleições municipais de 2024, o que preocupa a socióloga e jurista Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. Carolina alerta para o que chama de “policialismo”: o excessivo uso das carreiras e dos discursos ligados às pautas de segurança pública para que candidatos se lancem politicamente.
Para além das consequências políticas dessa ascensão eleitoral de policiais, ela conta que existe um efeito sobre o próprio desempenho das forças de segurança pública, que se tornam menos eficazes e mais letais na medida em que se politizam.
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“Quando a política entra por uma porta, a disciplina e a hierarquia saem pela outra”, alertou a pesquisadora, que já foi consultora de segurança pública do Ministério da Justiça e do Centro Internacional de Prevenção ao Crime, no Canadá. Ela explica que a participação de policiais na política em si não é um problema, mas a falta de regulação sobre como se deve dar esse processo compromete tanto a organização interna das forças quanto os índices de letalidade em campo.
“O grande perigo está relacionado ao conflito de interesses: quando se usa o trabalho como policial muito mais para fins eleitorais do que para a segurança pública”, apontou. Esse conflito se manifesta de diversas formas: desde a utilização de espaços internos na corporação policial como palanques políticos à espetacularização do próprio trabalho por policiais em busca de popularidade para angariar votos pelas redes sociais.
Esse conflito tem, por última consequência, a desprofissionalização das forças de segurança em favor de interesses políticos pessoais. Carolina Ricardo demonstra como exemplo o caso do coronel Aleksander Lacerda, da Polícia Militar do estado de São Paulo (PMESP), afastado do cargo em 2021 após utilizar suas redes sociais para convocar manifestantes a um ato bolsonarista e proferir ataques ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele tinha mais de 5 mil homens sob seu comando, e ganhou novos poderes sob a gestão de Tarcísio Freitas.
Publicidade“Ele fez discursos para insuflar a tropa, ideologizar a corporação. Isso aumenta inclusive o risco de violência política: uma tropa mais bolsonarista tende a ser muito mais violenta em relação a militantes de outras correntes. Fica comprometido inclusive o próprio cumprimento dos protocolos de segurança”, explicou.
Dano sobre a democracia
Paralelamente ao dano sobre a segurança pública, Carolina Ricardo chama atenção para o risco que a penetração de interesses eleitorais sobre corporações policiais representa para o regime democrático. “Quando se tem uma ingerência política nessas forças, a primeira coisa que se perde é o caráter democrático do monopólio do uso da força. Ele passa a servir a discursos autoritários”.
O exemplo máximo desse fenômeno se deu nos atos golpistas de 8 de janeiro, marcados pela ausência de comando da força da Polícia Militar do Distrito Federal encarregada de acompanhar a manifestação, postura que inclusive resultou na condenação de membros da cúpula da instituição pelo STF. Os dias anteriores também contaram com a falta de ação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) contra os bloqueios rodoviários impostos por militantes bolsonaristas pelo país desde o resultado das eleições.
As consequências também se apresentam no âmbito legislativo. “Temos no Congresso Nacional o sequestro da pauta da segurança pública, que é uma política pública que deveria receber o mesmo tratamento de temas como educação ou saúde, por parlamentares que se vêem como donos de um monopólio dessa questão. É como se só um professor pudesse falar sobre educação”, relatou.
Com isso, fica comprometida a democratização do debate sobre a segurança, cuja discussão passa a atender não mais a um interesse público, mas a interesses corporativos. “Em muitos casos, vemos um debate até mesmo autoritário, como ocorreu no governo Bolsonaro com a questão do excludente de ilicitude, que no fundo era uma permissão do policial para matar”.
Carolina Ricardo sugere que a solução não seja excluir policiais do debate sobre a segurança pública, mas sim estabelecer uma regulação com normas rígidas sobre como deve ser feita a entrada de policiais civis e militares na política. Sem um regramento preciso para impedir o uso da corporação como instrumento eleitoral, ela teme que o fenômeno se intensifique, impossibilitando a longo prazo o controle da população sobre a própria segurança.