“Pra onde eu vim
Não vou chorar
Já não quero
Ir mais embora
Minha gente é essa agora
Se estou aqui, trouxe de lá
Um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar”
Entre 1500 e 1900, mais de 20 milhões de africanos foram retirados à força de suas terras para trabalhar em fazendas e colônias das regiões invadidas e conquistadas pelos europeus no que chamaram de “Novo Mundo”. Os versos acima, da canção “Pai Grande”, de Milton Nascimento, relatam os sentimentos envolvidos nessa migração forçada. Uma diáspora.
O termo diáspora designa o deslocamento forçado de grandes massas populacionais das suas regiões de origem, espalhando-se pelo mundo. Originalmente mais relacionado aos judeus, que por milênios viram-se forçados a viver fora de suas terras até conquistarem o estado de Israel após a Segunda Guerra Mundial, outras tristes e dramáticas diásporas atingiram outros povos. E os africanos escravizados relatados na canção de Milton são um triste exemplo.
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No grave quadro que vive hoje a ciência brasileira, é triste que o termo venha agora a designar o forte deslocamento de estudantes, cientistas e pesquisadores do Brasil para outros países. Embora ainda não haja números quanto à quantidade de brasileiros que hoje estudam ou fazem pesquisa no exterior, sabe-se que esse número tem aumentado de maneira assustadora. Estudantes, pesquisadores e cientistas têm sido atraídos pela melhor oferta de oportunidades em outros países, em contrapartida com o cada vez menor investimento em ciência e tecnologia no Brasil, como a série Ciência à Deriva mostrou em reportagens anteriores. Trata-se de uma nova diáspora, a diáspora científica, já que a falta de oportunidades no país força esses deslocamentos.
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No exterior, diante das novas oportunidades, não raro esses brasileiros passam a sentir como o personagem da canção de Milton Nascimento. Não querem mais ir embora. Querem a quem os quiser amar.
“Políticas embrionárias”
A doutora em Política Científica e Tecnológica do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Ana Maria Carneiro, estuda o fenômeno da diáspora científica. O NEPP tenta preparar agora um levantamento mais detalhado do número de estudantes, cientistas e pesquisadores que se encontram fora do país e por quais motivos. Segundo Ana Maria, já se sabe, porém, que o Brasil é um dos países com maior taxa de imigrantes altamente qualificados vivendo nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Embora Ana Maria ressalve que nem toda migração na área possa vir a ser necessariamente prejudicial – pode haver casos em que haja um intercâmbio no qual o pesquisador vai estudar ou viver por um tempo no exterior e retorna ao Brasil com o conhecimento adquirido –, ela reconhece que, no caso brasileiro, a grande migração “pode ter efeitos no desenvolvimento do país”.
Veja em vídeo entrevista com Ana Maria Carneiro:
“Há limitações para estimar o número de talentos da diáspora brasileira”, escreve ela, em artigo assinado juntamente com Ana Maria Nunes Gimenez, Cintia Denise Granja, Elizabeth Balbachevsky, Flávia Consoni e Victor Fidêncio Andretta. No Censo de 2020, acrescentam os pesquisadores, foram excluídas questões sobre migração internacional, o que tornou mais difícil a coleta de dados. “As políticas mobilizadas pelo governo brasileiro são ainda embrionárias, ainda voltadas para mapeamento e engajamento genérico”, continuam. “Faltam elementos concretos para organizar e canalizar esse potencial de diáspora para políticas com um desenho de ‘alta resolução’, articulando a cooperação e o engajamento em torno de problemas nacionais específicos”.
“Estamos perdendo as pessoas”
Se não há da parte do governo, como dizem os pesquisadores, políticas para tentar canalizar e trazer de volta o conhecimento adquirido por estudantes e cientistas no exterior, a prática parece demonstrar que, de fato, tudo isso acaba perdido. O professor de Química Orgânica e Biológica do Instituto de Química da Universidade de Brasília (UnB), Breno Amaro, sente os efeitos dessa evasão. Anos atrás, ele conta que tinha seis alunos no curso de pós-graduação que ministra. Hoje, tem apenas dois. “Estamos perdendo as pessoas para outros países porque não conseguimos mantê-las”, constata o professor. “Quatro anos em um curso que deixa de acontecer podem depois representar décadas na tentativa de retomada do crescimento da ciência no país”.
Veja abaixo entrevista com Breno Amaro:
“Já perdi vários alunos por falta de bolsas, por falta de investimentos. Isso é um problema muito sério”, relata o professor. Hoje, o valor de uma bolsa de mestrado no Brasil está em R$ 1,5 mil. Uma bolsa de doutorado em R$ 2,2 mil. E há uma exigência de dedicação exclusiva aos estudos. Ou seja, na prática é quase impossível uma pessoa viver com a bolsa e de fato dedicar-se aos estudos.
“É um mix de sentimentos”, relata a doutoranda de Ciências Médicas, também da UnB, Renata Garcia. Ela conta que sua aspiração inicial era viver a vida acadêmica, algo que acabou não conseguindo. “Fui bolsista na graduação, na pós-graduação. E acabei constatando que o investimento que fizeram em mim não retorna porque o mercado não me absorve”, diz ela. Hoje, Renata participa com outros estudantes e pesquisadores de uma startup que tenta, ela própria, financiar os estudos e pesquisas de seus sócios para que eles sobrevivam e desenvolvam seus projetos.
Veja a entrevista com Renata Garcia:
Para Renata, o prejuízo com a falta de incentivo e aproveitamento do conhecimento fica óbvio. A pesquisa feita por ela na sua pós-graduação visava aumentar o controle da propagação do mosquito da dengue. A doença cresce no país especialmente a partir da década de 1980 e está presente em mais de 70% do território nacional. “Nós desenvolvemos um produto que auxiliava nesse controle. Ele poderia estar sendo usado”, diz ela. Ela agora pesquisa, na empresa startup, o desenvolvimento de biopesticidas que não deixam resíduos nos alimentos. Outra importante contribuição que pode trazer retornos à saúde e à economia do país. Espera que agora consiga de fato desenvolver e colocar o produto no mercado.
“Eu não quero sair daqui”
Renata, por seu “mix de sentimentos”, não quer deixar de acreditar no Brasil. “Eu tive a oportunidade de estar em outros lugares do mundo que levam a pesquisa a sério”, diz Renata. “Mas eu não quero sair daqui”, continua.
Se Renata insiste em se manter no país, outros fizeram a opção pelo exterior. E afirmam que, se puderem, de lá não pretendem voltar. Caso de Camila Tabet, que faz um curso de pós-graduação em cadeias produtivas e faz logística em Vancouver, no Canadá.
“Nem é tão frio aqui”
“Na pandemia de covid-19, nós vimos o tamanho da importância de se estudar e organizar esses processos de distribuição. No caso da covid, distribuição de vacinas e outros medicamentos e equipamentos. E vimos como o governo falhou nisso e como a população brasileira sofreu por essa razão”, avalia Camila. Ela poderia estar se valendo do conhecimento que adquiriu nessa área no Brasil. Mas não está. Estuda no Canadá e faz estágio na sua área para uma empresa canadense que distribuiu refrigerados para todo o país e também para os Estados Unidos. Camila desenvolveu para a empresa um estudo dos fluxos de frete.
Veja a entrevista da Camila Tabet:
“Infelizmente, eu não vejo no Brasil as chances que se abriram para mim aqui no Canadá. Hoje, aqui, eu tenho um visto de estudante. Mas o país me estimula e parece precisar do conhecimento que eu aqui adquiro e produzo”, afirma ela. “Em dez meses aqui, consegui mais do que em anos no Brasil”.
Nem o frio canadense parece ser um problema para Camila, que vive no país com sua companheira. “Nem é tão frio aqui”, diz ela. Como a vítima da diáspora africana retratada na canção de Milton Nascimento, Camila não quer “mais ir embora”.