Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia, identificou, em uma de suas pesquisas, que nenhuma democracia consolidada enfrentou uma crise de fome. Não fosse por qualquer outra razão, as democracias deveriam ser preferíveis a qualquer outro sistema. Aristóteles, em seu Ética a Nicômaco, ressaltou que a política tem a obrigação de incorporar as outras ciências para que consiga alcançar seu propósito maior é que o bem comum da humanidade. Traduzindo em outras palavras: a política não pode tolerar a fome!
Uma imagem veiculada pela mídia tornou-se síntese do descalabro atualmente vivido pelo Brasil nesse campo: pessoas revirando caminhões de lixo em busca de comida. Símbolo de uma realidade de 19,1 milhões de pessoas com fome (9% da população) e 116,8 milhões de pessoas com algum grau de insegurança alimentar, segundo dados levantados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Somente quando as imagens surgiram, o debate voltou à esfera pública. Fantasmas não morrem de fome, razão pela qual muitos preferem que essas pessoas sigam invisíveis.
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Se há fome, esse é um sintoma de que nossa democracia está disfuncional. Mais do que os elementos considerados nos diversos rankings democráticos (Varieties of Democracy, The Economist Democratic Index etc.), usualmente relacionados a configurações do processo decisório e participativo, a fome é um indicador claro e cruel: há um vazio! Vazio resultante do vácuo deixado pelas instituições, públicas e privadas, que, em democracias funcionais, interagem para evitar catástrofes como as fomes.
Há uma necessária conexão, fundamental, entre o processo público de governo de um povo e as demandas mais fundamentais do ser humano. Estamos aqui no nível da essência do valor atribuído a uma vida em comum – deve haver uma resultante positiva na convivência a justificá-la, diante da sempre presente potência da liberdade plena – só possível no indivíduo isolado. Manter essa conexão é vital para o desafio prático de tornar a democracia mais efetiva, posto que articulada com a (abstrata mas concreta) noção de justiça social. Uma comunidade deve escolher em termos do bem-estar dos membros da comunidade, quadro diante do qual a fome de alguns é inaceitável.
Pensar em termos do que ‘nós’ precisamos fazer significa reconhecer que existe o outro e, com eles, objetivos diferentes dos próprios. O fato de os objetivos dos outros não estarem, necessariamente, incorporados aos nossos, não representa, entretanto, a possibilidade de ignorar que existem interdependências, con-vivências, a serem preservadas. O senso de identidade de uma comunidade democrática abrange a capacidade de criar e seguir regras comportamentais que são de inestimável importância instrumental para a promoção dos objetivos de todos os membros do grupo – como saciar a fome (e, com ela, resolver a questão mais básica da sobrevivência de cada um) de todos.
PublicidadeO retorno da fome ao campo dos problemas brasileiros é uma calamidade, resultante de um fatalismo irracional disfarçado de compostura baseada em realismo e senso comum. Mas há uma voz gritando ao fundo: as exigências da justiça têm de dar prioridade à eliminação da injustiça, nas palavras de Sen. Mesmo alguns políticos bem-intencionados justificam o momento com a projeção do que virá, prolongando ao infinito a busca de uma sociedade perfeitamente justa e deixando aqueles que morrem de fome com o desafio de encontrarem consolo no pós-vida. Nesse futuro, particularmente, todos estaremos mortos.
Democracias não podem se operacionalizar por via de um institucionalismo transcendental, com suas utopias conceituais que prescrevem arranjos institucionais justos e ótimos para as sociedades. Evidentemente, a natureza da sociedade está muito vinculada ao conjunto específico de instituições presentes em sua configuração. Mas a busca transcendental do pacote perfeito de instituições sociais pode resultar em caso similar ao da cirurgia que é um sucesso completo com o paciente vindo a óbito. O risco é o de um fundamentalismo institucional, vedando a possibilidade de uma análise crítica das consequências reais de se ter as instituições que se tem.
A fome é cruel. Pessoas desesperadamente necessitadas podem não conseguir encontrar coragem e forças para até mesmo desejar, quanto mais propor e realizar, qualquer mudança radical. Usualmente, acabam ajustando seus desejos e expectativas ao pouco que viabiliza sua passagem pelos dias – vendendo o almoço para comprar a janta ou revirando as latas de lixo. Discute-se a qualidade do voto. Quem tem fome só pensa no próximo bocado. Voto?
Um sistema político é algo complexo, abrange legislação e costume, deveres e direitos, e um conjunto de obrigações imperfeitas, aquelas que não são definidas de maneira particularmente precisa. Mesmo assim, essas não estão ausentes nem são insignificantes. A premissa de que todos tenham o suficiente para se alimentar entra nesse campo. A comunidade deve zelar pela comunidade. Repartir o pão, antes do sentido espiritual tem o sentido literal da sobrevivência comum. Do mínimo bem comum.
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