Carlos A. Lungarzo
Muitas pessoas, mesmo entre as mais progressistas, parecem pensar que a derrota do governo da ultradireita por meio das eleições de 30 de outubro foi um fato natural, e que a democracia volta a ser estabelecida simplesmente pela posse do novo presidente. Entretanto, podemos conjecturar, mesmo sem provas robustas, que o sistema montado nestes últimos anos (um sistema com certa originalidade, que talvez poderia ser batizado com o nome de “mafionazismo”, para não usar uma expressão equívoca como “bolsonarismo” e um termo como “ultradireita”, que, neste caso, parece insuficiente) perdeu o poder apenas porque os métodos extremos de fraude e ameaça, incluindo granadas, tiros, bloqueios, mortos e incêndios, não foram aplicados com a suficiente eficácia.
O fracasso não surpreende, porque um sistema baseado no terrorismo do estado, no ódio racial, de gênero e de orientação sexual, e no ataque não apenas contra opositores, mas também contra pessoas humanitárias aparentemente apolíticas e até estrangeiros (como no caso os ecologistas Bruno e Dom), cria um caos tão grande, que os mesmos difusores de fake news, e os que planejaram o bloqueio do trânsito dos eleitores executado pela PRF podem perder sua eficiência logística. Ou seja, os próprios autores de grande confusão perderam a medida de seu poder, e subestimaram sua necessidade de aplicar recursos mais vultuosos.
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Um pouco de técnica e inteligência emprestada poderia ter feito fracassar o triunfo da coligação encabeçada por Lula. Teria sido suficiente aumentar o dinheiro para compra de votos, multiplicar a sabotagem ao trânsito nas estradas federais, e colocar mais mercenários e mercenárias armados(as) na rua.
Afortunadamente, isso não se fez, mas pode ser tentado num futuro. Quem ameaça dois juízes da Suprema Corte que atuaram de maneira ilibada, não pode ser qualificado de tímido ou inibido; é, sem dúvidas, uma pessoa sem limites. Mas,
esses limites poder ser impostos se a democracia atua com coragem!
Contribuíram à vitória da democracia alguns políticos de centro como Simone Tebet, junto com vários setores da centro-direita que perceberam que as milícias representavam um perigo que ia além da esquerda. Foi muito valiosa a reação, incomum e enfática, do mundo civilizado horas após o triunfo de Lula. Os países mais avançado já tinham preparado o reconhecimento do vencedor para ser enviado rapidamente, com o intuito de evitar um golpe relâmpago. A ação foi
sucedida, porque tudo indica que projetos militares ou policiais de criar um putsch foram imediatamente desmoralizados.
A rapidez das democracias dos países desenvolvidos para apoiar o resultado das eleições deve ter obrigado a refletir aos golpistas sobre a dificuldade de manter uma ditadura funcionando com eficiência no cenário internacional atual. Mas pode ser perigoso insistir em que a democracia sempre se impõe, e que ela pode ser aceita como um bem natural, que acontece de maneira automática. É verdade que a forma com que os valores democráticos foram depredados no Brasil foi um pouco excepcional na história recente, mas há casos semelhantes mesmo no coração da Europa. A diferença está no estilo.
Pessoas que foram obrigadas a comer osso e a lutar pelo direito a beber água potável nem sempre podem se dar ao luxo de recusar a troca de uma propina por seu voto, embora muitos tenham se mantido fiéis a seus princípios. Isso não é falta
de dignidade. É apenas desespero e terror, que todos os humanos, de qualquer ideologia e crença, sentimos ante os seres teratoformes. Também é verdade que, segundo a imprensa, o assédio eleitoral foi, desta vez, 13 vezes maior em que 2018.
Muitas pessoas tiveram coragem e denunciaram, mas outras obedeceram. O TSE não tem o suficiente controle sobre indivíduos importantes corrompidos dentro de estruturas como a PF e a PRF, portanto torna-se absolutamente impossível ação de combate ao terrorismo consentido num país continental como o Brasil. O trabalho da maioria do TSE foi essencial para denunciar e tomar providências circunstanciais para salvar a democracia, mas a ultradireita está organizada, aprende, e, se tudo não for investigado, julgado e punido imediatamente, vão se aperfeiçoar.
Não podemos esperar pelo assentimento da PGR, pois hoje ninguém duvida que Aras e os seus fazem parte do esquema. Partidos, sindicatos e entidades representativas da sociedade civil precisam provocar o judiciário com petições urgentes.
Não podemos deixar passar estas atrocidades em nome da “pacificação e unidade nacional”, como no pós ditadura, concedendo anistia aos terroristas de Estado sem julgamento de seus crimes.
Por sinal, observem que em quase todos os países que processaram seus ditadores e comparsas, a possibilidade de golpe não reapareceu, como mostram Uruguai, Argentina e Chile. Cabe a dúvida se a ultradireita teria chegado ao Brasil
em 2018, se os algozes da ditadura tivessem sido responsabilizados.
Todos viram a lista de crimes cometidos por agentes do estado durante estes quatro anos, em todos os níveis. Foram agressões contra a humanidade, a saúde, o meio ambiente, a educação, a cultura, as instituições democráticas, a ciência, a
industrialização produtiva, as relações internacionais com países democráticos, os pacifistas, as etnias não brancas, as mulheres, as crianças, os pobres e até contra o Papa. Enfim, a lista é imensa.
Nenhuma pesquisa pode calcular quantas gerações serão necessárias para recuperar a democracia perdida, mas, pelo menos, deve-se intentar o começo da recuperação. No entanto, a viabilidade desse processo, exige a responsabilização dos autores de todos aqueles atos que violaram a constituição, a lei, os direitos humanos e o direito internacional.
Há uma falácia para criar a ideia de que justiça é “revanchismo”, e que o melhor é virar a página. O discurso de que o país está dividido conduz, em alguns casos, à mesma confusão: Para reunificar o país, devemos relevar os crimes e seus autores
e outorga-lhes perdão? É óbvio que não; se esse argumento se generalizasse. todo o planeta já teria sido engolido pelos diversos tipos de terrorismo, em particular o Terrorismo de Estado.
Poucos candidatos tiveram a sensibilidade de lembrar que o governo abriu as portas às compras massivas de armas, aumentando os assassinatos entre civis, de maneira especial o feminicídio e, principalmente, em larga escala, aparelhando as
milícias. Parece que o termo “milícia” virou tabu ou expôs os políticos a medo de represália, pois mesmo atos criminosos cometidos por candidatos no interior de favelas não foram denunciados com o rigor que seria esperável.
Também houve pouca ênfase no excelente relatório da CPI da Covid, cujo trânsito foi travado pela PGR. Embora a CPI não possa julgar, mas apenas investigar, seria absurdo negar a seriedade de seus principais membros. O
vice-presidente Randolfe Rodrigues, sempre muito ativo, fez saber que os cálculos indicavam a possibilidade de penas de longa duração. Já foram apresentadas pela CPI denúncias graves de corrupção na compra de vacinas (incluindo até a venda de vacinas inexistentes e a criação de instituições fantasmas para viabilizar a fraude), abuso de poder, charlatanismo médico,
experimentos criminosos com seres humanos, dentre outras tantas ocorridas durante a pandemia de Covid-19, que, por enquanto, não foram sequer analisadas pela justiça.
Uma comparação simples e evidente pode mostrar que a responsabilização não só é uma exigência ética e jurídica, como também uma necessidade absoluta para a manutenção da democracia. Comparemos a Alemanha do período nazista com a democracia da Alemanha atual, que é uma das melhores do mundo. Atentemos agora para a Itália do período fascista em relação com a Itália posterior até os dias de hoje. O país ficou fortemente instável, com governos de duração imprevisível e com quatro oportunidades em que se esteve na beira do golpe de estado de ultra direita.
Finalmente o neofascismo proclamou-se explicitamente vencedor na Itália no mês de setembro, revelando a tendência que ficou latente durante décadas. Triste: 77anos da vida de um país totalmente perdidos!
A explicação é simples. Na Alemanha não só houve julgamentos, como também um longo período (ainda vigente) de reeducação da população para que entendesse a dimensão dos crimes nazistas e se desenvolvesse uma cultura de bem
estar social. Na Itália, os que lutaram bravamente contra Mussolini (entre os quais houve um contingente brasileiro) foram afastados da vida pública depois da vitória. Aos poucos, os fascistas se reinstalaram, e agora se mostram abertamente.
Para os que preferem argumentos menos à esquerda (porque criticar o fascismo é malvisto nestes tempos de mafionazismo), vejamos o exemplo da Rússia. Os crimes da ditadura de Stalin foram divulgados na década de 1950, mas seus executores ficaram livres dentro da burocracia subsistente. Houve uma tentativa de democracia durante o governo de Gorbatchov, que tendia levar a Rússia o estado de direito existente na Europa, mas os herdeiros do stalinismo se reorganizaram, e hoje temos a catástrofe na Ucrânia, com consequências para o mundo todo.
A redução da democracia a uma simples regularidade cronológica do processo eleitoral tira a essência do estado de direito. Precisamos, também, garantir que os programas (de qualquer ideologia) se obriguem a respeitar a
dignidade humana, o estado de direito e a Constituição.
Se “perdoarmos” os criminosos deliberados que agiram massivamente contra o povo, trataremos o ato eleitoral como uma simples banalidade, e estimularemos que caudilhos de extrema direita proliferem. Lamentavelmente, ainda hoje esses
exemplos abundam no Brasil e em diversos locais do planeta.
Esta é, nos dias de hoje, uma oportunidade excepcional e, quem sabe, única. A tarefa não pode ser carregada só nas costas do PT. É preciso a colaboração de toda a sociedade que se identifica com a democracia, e que os elementos antidemocráticos sejam educados, quando possível, pois só uma parte dos eleitores do 22 são seguidores radicais. Já os abertamente criminosos, que são uma pequena minoria, devem ter um castigo proporcional, dentro de todas as salvaguardas da lei.
Conjecturas não confirmadas, mas formuladas por analistas sérios, sugerem que aqueles mafionazistas irredimíveis não devem ser mais de 15%. É cinismo dizer que os membros democráticos da sociedade estamos atacando a metade do país. Não atacamos ninguém. Apenas nos defendemos daqueles que procuram o retorno à barbárie.
Ontem ouvi pelo Globo News, uma reflexão impecável de um analista. Em reprodução livre: “Se não são responsabilizados os autores de crimes contra a democracia, a justiça ficará desmoralizada para julgar crimes mais leves, e quase
todos os outros crimes são mais leves”.