A Revolução Francesa se fez em nome da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A luta pela Igualdade já não era nova na época. Da mesma forma que as lutas pela liberdade – seja de escravos, seja de países, seja pela liberdade de opinião – elas sempre existiram. E possivelmente sempre existirão. Frequentemente levam a mudanças – nem sempre a avanços. Muitas vezes levam a retaliações e retrocessos. Entre outras, a Revolução Francesa criou a República para depois coroar Napoleão como imperador e massacrar contingentes expressivos de dissidentes. Até hoje ressoa a frase que Jeanne-Marie Philipon teria exclamado ao passar em frente à Estátua da Liberdade, a caminho da forca: “Liberdade, ó liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome”. Tudo em nome da liberdade. Mas o que isso tem a ver com as cotas?
Tudo a ver. Cotas têm a ver com o ideal da Igualdade – seja a igualdade de direitos, seja a igualdade de oportunidades, seja a busca de reduzir ou corrigir os efeitos de desigualdades. No artigo da semana passada, sugeri elementos para fortalecer o debate sobre o tema das cotas. No presente artigo, tomo emprestado o conceito de diversidade – que frequentemente é usado como argumento para justificar critérios de acesso de indivíduos identificados com ou por diferentes características – raça, cor, etnia, sexo, preferências sexuais – mas que também poderiam ser outros como região de origem, tamanho ou peso corporal (obesidade). Os critérios são infindáveis. Onde estarão os riscos?
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O primeiro risco tem a ver com o conceito de meritocracia, pois cotas colocam esse conceito em questão. Na administração pública, com a queda do absolutismo e o advento dos estados nacionais, a “racionalidade burocrática”, no sentido definido por Max Weber, tornou-se o padrão. A impessoalidade e o mérito converteram-se no padrão-ouro para a seleção de funcionários públicos. No mundo acadêmico, isso também se tornou moeda corrente: notas para admissão de alunos, notas em concurso e/ou qualidade das publicações para admissão de professores, qualidade de uma proposta associada à qualidade das publicações para a avaliação de pesquisas. Dado o critério, os concorrentes serão selecionados unicamente em função disso – o que supostamente asseguraria transparência e isonomia. Outras características não serão levadas em consideração. Os críticos do conceito de mérito contestam o contexto – o “mérito” na verdade foi adquirido no berço, condição de nascimento ou condição social.
Com isso, abre-se o espaço para incorporar outros critérios para contrabalançar injustiças reais ou percebidas. Até aqui têm predominado questões relacionadas a injustiças históricas flagrantes – particularmente a questão de raça e a discriminação contra a mulher. Mas uma vez aberta a porta, há uma fila de outros direitos de acesso – seja para promover a igualdade de condições, seja para promover o conceito de diversidade.
O conceito de diversidade – que começa a ser cada vez mais disseminado e adotado como critério para admissão de alunos, professores, especialmente nas universidades de elite norte-americanas – ou, de resto – funcionários em empresas – coloca em questão o fundamento do conceito que cria a racionalidade da administração. Não é mais – ou não é apenas – o mérito ou a adequação às características da função que importam – o que passa a vigorar é o atendimento ao critério da diversidade como fundamento da decisão. Isso significa que o resultado de uma competição dependerá não apenas do candidato preencher determinados requisitos – também dependerá de outras características pessoais.
E é aí que surgem inúmeras dificuldades. A primeira delas é conceitual: que tipo de diversidade? Queremos compor grupos que representam diferentes diversidades? Ou queremos – para os objetivos de uma determinada organização – que todos os indivíduos sejam atentos e alertas à diversidade estrutural – por vezes relativa a características imutáveis ou indeléveis? Esta dificuldade torna-se ainda mais complexa se levarmos em conta as implicações práticas que decorrerão da inevitável multiplicação das reivindicações identitárias.
E aqui é particularmente útil e pertinente o exercício feito por Jordan Petterson. Ele começa entrando com os dados de raça e sexo. Se consideramos as 5 principais tipologias de população, 2 sexos e 3 gêneros teríamos um potencial de 30 diversidades.
Se acrescentarmos pelo menos alguns dos tipos mais conspícuos de deficiências físicas ou mentais – como visão, audição, locomoção etc – poderíamos chegar a pelo menos nove tipos. Considerando o portador e o não-portador de cada deficiência e multiplicado pelos 30 grupos atingiríamos um total de 15.360 pares a serem considerados (30 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2).
Mas a conta não para por aí. Poderíamos acrescentar a variável socioeconômica (acima e abaixo de um determinado nível): a conta passaria para 30.720 categorias a considerar. Petterson ainda lembra de outras categorias que podem vir a ser relevantes ou reivindicadas por diferentes grupos – como altura, força, atratividade pessoal, inteligência, língua, nível educacional, status conjugal, ter ou não filhos e por aí vai. Facilmente chegaríamos a mais de 15 milhões de diferenças – cerca de 1/3 do total da força de trabalho formal no Brasil.
A questão central não é a precisão ou pertinência do raciocínio. É o exame do princípio subjacentes: o que deve definir a condição de acesso – seja a uma vaga de emprego seja a uma vaga na Universidade pública, acesso a fundos de pesquisa ou concorrência para contribuir uma obra. Vale para todos. E aqui parece haver dois caminhos.
Um deles é o caminho do mérito – definido nos termos de cada certame e, tem tese, com o objetivo de maximizar a adequação do candidato à função. E, havendo restrição de vagas (na escola ou no emprego), pela seleção dos que apresentaram as melhores notas (ou pontos) nas características definidas. Todas as demais qualidades e características dos candidatos não interferem. Isso valeria para escolher os jogadores da seleção, os candidatos a cirurgião, piloto, curso na universidade ou vaga de emprego. Torna tudo mais transparente. Mas não necessariamente “mais justo”. “Justiça” é um termo complexo que leva a grandes causas e a derramamento de sangue. Os economistas preferem o termo “equidade”.
O outro caminho é lutar por inserir outros critérios em função de outras características e justificativas que não o mérito. Até aqui a questão racial conquistou grande aceitação no caso das quotas para ensino superior. A evidência parece sugerir que, pelo menos no caso do Brasil, o critério socioeconômico seria mais “justo”, ou proporcionaria maior equidade. Em alguns setores abre-se espaço (cotas) para outros tipos de características – como sexo (não é o mesmo que preferência sexual), determinadas deficiências etc.
Na prática, se abre uma caixa de Pandora. Todos sabemos como começa, ninguém sabe como pode terminar. As tensões e guerras identitárias surgem como um prenúncio. Como em tudo na vida, é prudente fazer as contas antes de começar qualquer novo empreendimento. Como nos lembrava o Barão de Itararé, as consequências vêm depois.
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