A aquisição de armas de fogo para equipar a Guarda Municipal é ponto comum nos planos de governo dos dois candidatos melhor posicionados nas pesquisas eleitorais para a prefeitura do Rio de Janeiro, respectivamente o atual prefeito Eduardo Paes (PSD) e o deputado Alexandre Ramagem (PL). Especialistas consultados pelo Congresso em Foco alertam que essa medida pode agravar a crise de segurança pública no município.
Paes e Ramagem abordam o armamento da Guarda Municipal de formas distintas. O primeiro propõe especificamente a aquisição de armas para um grupo de elite da corporação, formado pelo Grupo de Operações Especiais, Grupo Tático Móvel e Ronda Maria da Penha, mediante um treinamento rigoroso. Já Ramagem prevê uma política de amplo fornecimento para a força, inclusive articulando a elaboração de uma lei municipal endossando essa política, atualmente existente em outras 19 capitais.
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O professor de sociologia José Claudio Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), pesquisador dedicado aos estudos do funcionamento das milícias fluminenses, destaca que a maioria dos levantamentos sobre o tema indica que a implementação de armas de fogo para guardas civis em outros municípios brasileiros resultou no aumento da violência. “É como apagar fogo jogando gasolina. (…) Isso aumenta, fortalece e intensifica a força bélica. A associação deste elemento à violência urbana só a faz aumentar”, alertou.
A principal preocupação do pesquisador diz respeito ao risco de descarga de violência contra a parcela mais vulnerável da população. “Essa estrutura bélica estigmatiza grupos sociais. (…) Toda a descarga punitiva das forças de segurança recai sobre as pessoas mais pobres, os favelados, os negros. Os corpos atingidos por essa estrutura bélica são esses”, argumentou José Claudio.
O antropólogo, cientista político e ex-secretário nacional de segurança pública, Luiz Eduardo Soares, também teme pelo impacto que a introdução de armas no arsenal da Guarda Municipal possa provocar sobre os próprios agentes. “Os guardas municipais ficarão mais expostos à violência e terminarão absorvidos pela dinâmica letal em curso”, afirmou.
O consultor em segurança pública e sociólogo Marcos Rolim, pós-doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), afirma que de fato existem situações específicas em que é indicado o fornecimento de armas de fogo aos agentes. Para essa inserção conseguir surtir em resultados, porém, uma série de requisitos prévios devem ser preenchidos, como a capacitação rigorosa dos agentes.
“O risco é termos profissionais armados de baixa qualificação operando em um quadro de descontrole. É preciso que o Município tenha estrito controle sobre armas e munições, que haja uma corregedoria independente (não formada por guardas, mas por profissionais corregedores) e que se assegure formação continuada aos profissionais”, explicou.
Militarização
As propostas apresentadas no plano de governo de Ramagem trouxeram especial preocupação para os pesquisadores, principalmente as que introduzem elementos de militarização na Guarda Municipal, como a participação conjunta em exercícios e operações das demais forças policiais e a utilização da corporação para complementar as atividades da Polícia Militar.
Marcos Rolim teme que esse eixo de ação possa pôr em risco a própria vida dos agentes municipais. “Trata-se de uma irresponsabilidade que irá espelhar a Guarda nas polícias, expondo desnecessariamente a vida dos agentes e aumentando os indicadores de letalidade policial no Rio que já são altíssimos. Essa providência, terá um enorme custo de oportunidade, porque irá retirar a Guarda das suas funções precípuas que são de natureza preventiva”, declarou.
José Claudio e Luiz Eduardo Soares vão além, enxergando nessa iniciativa uma porta de entrada dos agentes ao crime organizado. “O controle territorial do crime, a milicialização e o próprio tráfico de drogas estão interligados com a estrutura estatal de ganhos. Não há estrutura armada no Brasil funcionando há tanto tempo sem conexões com a estrutura de segurança pública. Quando ele fala em militarizar a guarda municipal, quando alguém defende isso, traz para essa estrutura tudo isso o que há de pior no que vivemos hoje”, apontou José Claudio.
O Luiz Eduardo esclarece que a forma de atuação de corporações militares é mais suscetível à corrupção. “Você troca os agentes de segurança que pensam, que refletem por si próprios, com posições de análise, elaboração e estruturação de ações por comandos hierarquizados que obedecem uma estrutura influenciada por suborno, por corrupção, por ganhos e negócios entre diferentes grupos estatais e não-estatais”.
Soares se referiu às propostas nesta direção como um “ovo de serpente”, com especial receio no que diz respeito ao contexto das milícias na capital. “Militarizar e armar a Guarda Municipal são os primeiros passos para a criação de enclaves paramilitares que, inicialmente, promoverão insegurança para vender segurança, e logo depois, autonomizados, se tornarão cada vez mais perigosos, não apenas se aliando, mas protagonizando o crime”, antecipou o sociólogo.
Possíveis soluções
Dentro do contexto municipal, os especialistas compartilham pontos de vistas semelhantes sobre a melhor abordagem para o próximo gestor municipal garantir a segurança pública.
Os três defendem a construção de políticas de escuta da população na gestão de segurança, em especial para dar voz às parcelas mais vulneráveis. “Essa população que sofre na pele todas as vitimizações é a que deve construir as políticas de segurança. Elas são as mais bem informadas sobre aquilo que elas estão vivendo, sobre os processos que estão ali acontecendo: de ausência de alternativa, de expansão dos grupos armados, de conluios com a estrutura de segurança pública”, indicou José Claudio Alves.
Os pesquisadores também ressaltam a importância de investimento em políticas de proteção à primeira infância. “Muitos dos fatores de risco criminogênicos começam a operar nessa fase crucial do desenvolvimento dos indivíduos. A prefeitura deve reduzir significativamente a evasão escolar, capacitando os professores da rede municipal para os desafios da educação socioemocional e deve constituir protocolos para a atuação dos conselhos tutelares que, atualmente, agem de forma improvisada e sem prestação de contas”, recomendou Marcos Rolim.
Luiz Eduardo Soares também defende uma postura do próximo prefeito que propicie o esforço concentrado de múltiplos atores políticos no combate à criminalidade no Rio de Janeiro, exigindo “em campanha aberta e permanente, que o governo estadual cumpra seu dever e passe a controlar as polícias e o tráfico de armas”, além de convocar a população “para uma ampla repactuação contra a violência armada e a brutalidade policial de viés racista”.