O Brasil vive tempos estranhos, que provavelmente têm relação com a forma peculiar como o presidente Jair Bolsonaro enxerga a democracia.
Bolsonaro não parece enxergar a democracia como o canal dos consensos, a partir do qual as diversas partes da sociedade dialogam para chegar a um ponto comum. Ele parece só conseguir enxergá-la como o governo da maioria sobre a minoria. Na sua cabeça, o que sempre parece prevalecer é isso. Algo que se pode traduzir da seguinte forma: “A maioria, que está comigo, se impõe e massacra a minoria”.
Então, nesse processo, a condução do governo é quase sempre uma condução de guerra. Como ele mesmo tratou de levar agora para a sua campanha, de “luta do bem contra o mal”. Seus adversários não são seus adversários. São seus inimigos, que precisam ser derrotados.
Na campanha de 2018, o inimigo era o PT corrupto que, pela visão do discurso, teria dilapidado o país. Durante um tempo nesta campanha, imaginou-se que ele poderia seguir no mesmo caminho. As pesquisas demonstram que os rolos com rachadinhas, Orçamento secreto, no Ministério da Educação, em conversas estranhas para comprar vacinas, fazem com que boa parte da população não mais enxergue o governo Bolsonaro como um bastião de honestidade contra a outra horda corrupta. Então, abandonou-se na campanha o discurso anticorrupção.
O inimigo, então, passa a ser uma certa conspiração de instituições e poderes que tolhem a liberdade e jogam fora das “quatro linhas da Constituição”. Ficou claro que esse é um tipo de discurso que não cola e, pelo contrário, preocupa os setores mais organizados da sociedade, mesmo os setores conservadores que em 2018 estavam com Bolsonaro. Um discurso que gera tensão, que desestabiliza, que produz insegurança. E que, portanto, gera um ambiente péssimo para os negócios. Então, empresários e banqueiros assinam os manifestos em defesa da democracia. Bolsonaro ainda não abandonou esse discurso, embora parte do seu entorno de campanha tenha implorado desesperadamente que o faça.
Diante da perspectiva de que sempre tem que transformar sua condução política em uma guerra, Bolsonaro vai, então, partindo literalmente para uma guerra santa. Diante da ideia de que precisa reduzir sua rejeição junto ao eleitorado feminino, trouxe para perto a primeira-dama, evangélica, Michelle Bolsonaro. O problema é, no clima de guerra, Michelle entrou para dividir, não para somar.
PublicidadeEstamos neste momento realizando um novo censo. Logo, teremos os novos números. Mas, de acordo com o censo mais recente, a população que professa as religiões de matriz africana representa 0,3%. Todos os pesquisadores que se debruçam sobre esse número afirmam que ele é muitíssimo inferior à realidade. Boa parte das pessoas que frequentam os espaços das religiões de matriz africana se declaram nas pesquisas católicos ou espíritas. No mínimo, serão pessoas – e essas, com certeza, são muitas – que enxergam tais religiões com respeito, e que compreendem o quanto elas são importantes na formação deste nosso país de maioria negra.
Mas, ainda que fossem somente 0,3%, elas são uma parcela do povo brasileiro. Uma parcela que foi duramente agredida por Michelle nos últimos dias. Primeiro, ela disse em um culto que o Palácio do Planalto, antes da chegada de Bolsonaro (que, diga-se, é católico, não evangélico) era “consagrado ao demónio”. No dia seguinte, ela, então, colocou nas redes sociais uma foto do candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, participando de uma cerimônia em um templo de matriz africana. Com o seguinte comentário: “Isso pode, né? Eu falar de Deus, não”.
A associação entre a primeira manifestação de Michelle e a segunda é óbvia. Além do fato de que todas as religiões falam de Deus na forma da sua crença. Deus não é uma propriedade de determinada religião, ainda que em outras possa atender por outros nomes e ser até mais de um. Para qualquer um que acredita, se Deus quisesse que todos o enxergassem da mesma forma, certamente, com o poder que ele tem, já teria feito isso.
Fica clara de novo aí uma opção pela guerra. Pela tentativa de imposição de uma suposta maioria para massacrar as minorias. Vistas não como adversárias, mas como inimigas.
Há, ainda, outros probleminhas na entrada em campo de Michelle Bolsonaro. Um deles está claro em Brasília. Michelle apoia a candidatura ao Senado da ex-ministra da Mulher Damares Alves, pelo Republicanos. A candidatura de Damares rompeu com a tentativa de acerto para a formação de um palanque único pró-Bolsonaro no Distrito Federal, tendo na cabeça o governador Ibaneis Rocha (MDB), que tenta a reeleição, e a ex-ministra da Secretaria de Governo Flávia Arruda para o Senado, como forma de obter o apoio do ex-governador José Roberto Arruda. Damares mantém-se candidata e isso rachou a base política evangélica. Ela brigou com o coordenador da bancada evangélica na Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), e com o guru de Sóstenes, o pastor Silas Malafaia. Isso está bem contado em matéria escrita no Congresso em Foco por Lucas Neiva.
A opção pela guerra é sempre uma opção complicada. Mesmo quem optou por ela, de forma madura, em outros momentos da história, sabe disso. Como disse Winston Churchill, ela produz “sangue, suor e lágrimas”. Deixa mortos e feridos pelo caminho. Dos dois lados…