De tempos para cá, há um embate no mundo assim traduzido: deve-se dar curso à pesquisa e produção de combustíveis fósseis quando o planeta já vive, hoje mesmo, os tormentos da crise climática?
Segundo o IPCC, o painel de clima da ONU, o mundo tem menos de uma década para reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em quase a metade, se quisermos manter a sociedade e o meio ambiente como hoje os conhecemos. A Agência Internacional de Energia atesta que, para que isso ocorra, nenhum novo projeto de petróleo ou carvão deveria ser mais licenciado no mundo. Mas, para parcela da sociedade, por variadas razões não haveria como abrir mão, ainda, de combustíveis fósseis.
Os apologistas do “não” têm um argumento que, em tese, deveria bastar: a ciência atesta que, a se seguir a trajetória em curso, a humanidade ruma ao desastre climático e ao cortejo de horrores ambientais, sociais e econômicos que o acompanha. E, ante tal cenário, é mesmo o caso de se indagar por que tantos e tão graves alertas não têm sido capazes de nos mover, na velocidade necessária, em direção a mudanças suficientes para evitar o pior.
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Há questões subjacentes a este embate que operam nos planos individual e coletivo. Quantos de nós – quando não nós mesmos –, temos hábitos que, sabemos, são comprovadamente destrutivos, abreviam a vida e comprometem a sua qualidade? Fumo, álcool, sedentarismo, ultra-processados em excesso fazem parte do cotidiano de talvez bilhões de pessoas. Muitas dessas pessoas não ignoram o mal que infligem a si próprias e a seu círculo de relações. Mas, na vida como ela é para centenas de milhões de pessoas, sacrifica-se o futuro, que “a Deus pertence”, pela necessidade ou o prazer efêmero e imediato no presente.
Coletivamente, estamos sujeitos aos mesmos mecanismos, embrulhados por teorias acadêmicas, otimismos enviesados e fé (inclusive a má), que justificam ou encobrem o risco, quando não o dano concreto, posto a milhões de pessoas e incontáveis de formas de vida.
Nesse contexto ‘humano, demasiado humano’ de polarização, é pouco eficaz o entrincheiramento em posições irredutíveis e a rejeição do diálogo que não tenha como pressuposto único a resposta que se quer ouvir.
É nesse cenário que, como reflexo do que se vê no mundo, também no Brasil se dá o debate quanto ao que fazer com os ativos de óleo e gás que o país possui. Há um balanço entre os impactos positivos e negativos que essa atividade é capaz de gerar.
Estima-se que, de 2022 até 2031, apenas no Pré-sal a produção de petróleo no Brasil supere 8 bilhões de barris. Considerada a Margem Equatorial, ora sob holofotes, o cenário seria, economicamente, ainda mais promissor.
Mesmo ante quadro de preços conservadores, essa atividade poderia render no período dezenas de bilhões de dólares. Seriam recursos aptos a, por exemplo, fazer frente a todos os gastos sociais do Governo por anos a fio. De outro lado, por agravar o impacto climático, essa riqueza tem por contrapartida custos de dimensão relevante, talvez imensurável.
Nesse contexto de benefícios e custos superlativos, há de haver meios de maximizar impactos positivos e minimizar e compensar os negativos, para que, postos em balanço, mais ou menos se equivalham.
Objetivamente, o País possui grandes reservas de óleo e gás, e um parque industrial ainda dependente de combustíveis fósseis. Mas também detém imensas áreas – parte das quais ambiental e economicamente disfuncionais – onde podem ser desenvolvidas as chamadas Soluções Baseadas na Natureza (NBS, no acrônimo inglês).
Deixe-se claro: as NBS não devem se prestar a substituir esforços concretos de descarbonização da economia. Este é um imperativo não só econômico e ético, mas – em escala crescente– também jurídico. No mundo, tem-se cobrado de empresas não só a gestão das emissões decorrentes de suas próprias atividades e, pois, sob seu relativo controle (Escopos 1 e 2), mas também do consumo por terceiros dos produtos (v.g., combustível) por elas postos no mercado (Escopo 3).
Nesse cenário, o Brasil tem o potencial de desempenhar um papel para o qual não tem rival: a preservação e a restauração de biomas de relevância planetária, com o sequestro e armazenamento de GEE. Se bem concebidas, tais soluções podem ter profundas implicações de ordem ambiental, social e econômica.
Com efeito, a transferência de recursos financeiros de setores relacionados à extração e consumo de combustíveis fósseis para NBS, a título de compensação de emissões, pode produzir benefícios a biodiversidade, água, solo e microclima e, ademais, gerar centenas de milhares de empregos no País. Atividades de coleta de sementes, produção de mudas, plantio, manutenção, pesquisa e assistência técnica, inclusive com produção de alimentos, madeira, fármacos etc., podem consolidar novas vocações regionais baseadas na bioeconomia. Tais iniciativas podem envolver povos tradicionais, pequenos agricultores e assentados, fazendo com que populações desfavorecidas pela crise climática possam ser agentes de sua mitigação.
A questão é como o Brasil pode recrutar recursos domésticos e internacionais para a implementação, em larga escala, de NBS em seus biomas. Um ou mais fundos climáticos e de biodiversidade para a implementação de NBS, com feições públicas, privadas ou híbridas, poderiam ser criados e receber recursos, voluntários ou compulsórios (decorrentes da lei ou de decisões judiciais), para a implementação desses projetos. Esses recursos poderiam ser geridos por entes públicos, como o BNDES. Também organizações da sociedade civil poderiam ter papel significativo. Sob certas condições, mesmo fundos sob gestão privada, como os de Investimento do Agronegócio (FIAGRO), poderiam ter papel subsidiário, mas não irrelevante.
Definido pelo país um conjunto de regras baseadas na ciência, respaldadas pela lei e atentas a aspectos socioambientais e econômicos, estariam lançadas as bases para a estruturação de arranjos financeiros, produtivos e sociais relacionando compensações de emissões de GEE, biomas brasileiros e as pessoas que neles vivem.
O Brasil, assim, poderia se inserir no cenário global não só como celeiro de alimentos e produtor de commodities, –mas, também, de soluções baseadas na natureza, com suas implicações socioeconômicas, científicas e ambientais.
* Oscar Graça Couto é advogado e professor de Direito Ambiental da PUC-Rio.
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