Luiz Eduardo Soares *
Nem quando, em 1999, ouvi no rádio do carro a notícia de minha morte, nem quando, ainda garoto, ao lado de meu pai, escutei no radinho de pilha a leitura do Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de 1968 -eu ainda não atinava completamente seu alcance devastador-, nem mesmo quando, em 17 de março de 2000, soube pela TV que havia sido exonerado da subsecretaria de segurança do estado do Rio, o que me levaria a fugir com a família para o exílio. Nada disso. O momento mais marcante eu vivi, às 18:44 do dia 30 de outubro de 2022, assistindo à edição especial do Foro de Teresina: as curvas se encontraram, as linhas se cruzaram e o destino do Brasil começava a apontar na direção da vitória sobre o fascismo. Lula ultrapassava Bolsonaro na contagem de votos. Viramos! A comoção que tomou conta da sala, nos abraços enxarcados, nas interjeições embargadas, na alegria feroz e contagiante, nada tinha de ingenuidade quanto aos limites do que seria sensato esperar. Aquilo era nosso culto, o exorcismo em gritos e pranto da abjeção inominável que o bolsonarismo representava. Era nossa forma de louvar a vida, com seus riscos e contradições. O voto do povo trabalhador mais espoliado rasgava o capuz que nos asfixiava. O futuro se abria diante de nós.
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Quem for incapaz de se emocionar com a simples lembrança desse instante jamais entenderá o sentido profundo, histórico, complexíssimo da palavra esperança, que frequenta o léxico vulgar e protagoniza toda retórica demagógica, e no entanto é chave para decifrar o enigma da humanidade.
A emoção da noite em que Lula venceu o dragão da maldade para salvar o mundo, eu preciso dela como de pão e água. Preciso dela, apegar-me a ela, para resistir à corrosão ácida do ceticismo, que derruba a energia com que travamos as lutas de todo dia. Mas como não ceder ao desânimo, como não desesperar, como não se render ao imobilismo político quando a notícia que chega por rádio, TV, internet, e nos telefonemas angustiados dos amigos, reporta mais uma chacina policial, mais um banho de sangue promovido por agentes do Estado (agora em São Paulo, logo depois no Rio e na Bahia, e a seguir onde?), supostamente em nome da segurança pública, supostamente em razão da chamada “guerra às drogas” -não há categoria mais cínica e venal, mais repulsiva e estúpida.
O que seria uma guerra às drogas numa sociedade que se embriaga, inundada por mercadorias alcoólicas, patrocinadas por interesses poderosos de mega-corporações capitalistas? Numa sociedade que explora o trabalho e devasta o ambiente, convive com o estupro e autoriza a brutalização, faz circular os mais iníquos mecanismos de acumulação de riquezas e desdenha da acintosa desigualdade, fundada no racismo patriarcal? Uma “guerra” de quase 50 anos que só produziu morte (sobretudo de jovens negros, verdadeiro genocídio) e degradação institucional, sem obter qualquer redução no consumo das substâncias ilícitas ou nos lucros bilionários dos beneficiários da proibição, sem promover qualquer avanço na segurança pública? Guerra que não passa de eufemismo, uma espécie de nome-fantasia, ou genérico, para execuções extrajudiciais em territórios vulneráveis. No caso de Guarujá, visando vingar o torpe assassinato de um colega profissional -sim, é necessário sublinhar que também policiais são vítimas dessa estupidez.
Lutar com palavras é uma luta vã, no entanto lutamos, mal rompe a manhã, dizia Drummond. Pois é, o que mais nos resta? Usar a palavra para sensibilizar, persuadir, mobilizar. Sonho com o dia em que centenas de milhares forem para as ruas pelo fim da violência das polícias e das prisões, pelo fim do hipócrita proibicionismo, pelo fim do controle do corpo das mulheres, pela legalização do aborto e das drogas. Enquanto for apenas um sonho, a luta permanecerá esmaecida e confinada às letras que se escrevem, leem e esquecem. Mesmo assim, é indispensável seguir, manter viva a memória das 18:44 de 30 de outubro de 2022, manter-se fiel à esperança radical que ela mobiliza, evocar seus significados mais profundos, não só os imediatos.
PublicidadeO governo Lula é muito maior do que o próprio Lula e seu governo, seu horizonte de ação é o mundo, seu tempo é o futuro, sua missão histórica é o confronto com a devastação ambiental, com a extinção genocida dos povos originários, com o fascismo emergente no planeta -as ameaças de seu retorno, aqui, e de seu triunfo alhures. Por isso, é preciso defendê-lo com unhas e dentes, mas também por isso é preciso criticá-lo e cobrar-lhe mais coragem e ousadia, sem fazer o jogo de seus inimigos. É um tremendo desafio manter esse equilíbrio tão delicado.
Por tudo isso, e por entender que a maior armadilha em que tantos de nós caímos (fruto da lógica reativa midiática) tem sido abordar cada ocorrência como um fato isolado e opor a cada um deles respostas imediatistas, decidi tornar pública uma carta, originalmente pessoal e privada. Sinto-me no direito de fazê-lo porque ela não expõe qualquer intimidade ou dado sigiloso, nem provoca qualquer prejuízo ético ou material.
Em abril, um amigo generoso perguntou se eu não gostaria de enviar uma carta ao ministro da Justiça e da Segurança Pública. Ele dispunha de um portador que saberia valorizar a mensagem, o que garantiria sua entrega, em mãos, ao destinatário. Eis, portanto, a carta, que aqui se torna carta aberta ao ministro Dino.
Prezado ministro Dino,
não ousaria ensinar Pai Nosso ao Vigário. Não há agente público mais inteligente, qualificado e experiente. Não precisa de lições, nem mesmo de conselhos. Eu apenas tomo a liberdade de compartilhar algumas observações, fruto de minha já longa vivência e convivência no campo da segurança pública, como gestor e pesquisador. Ao longo de décadas (desde os anos 1980), acumulei mais derrotas do que vitórias. Por isso mesmo, me permito algumas ponderações.
Antes de expô-las, preciso dizer com ênfase, para que não se suponha ingenuidades de minha parte. Já não há tempo para arroubos ideológicos e frivolidades intelectuais. A meu ver, são duas as agendas que se impõem: uma realista (que depende de condições políticas), outra ideal (inaplicável, mas necessária para dar rumo à primeira). Em síntese, a primeira realizará o recorte da segunda que se mostrar viável, de acordo com correlações de força conjunturais e circunstâncias concretas.
Só o ministro saberá filtrar, da segunda agenda, a pauta compatível com os limites da realidade, em cada momento. Ninguém está melhor situado para proceder a esta avaliação.
Entretanto, talvez não seja impertinente contribuir para a formulação da segunda agenda, aquela que, mesmo eventualmente imprópria à conjuntura, deve estar sempre no horizonte.
Começo com o óbvio, mas raramente admitido: a situação da segurança pública é dramática e os fatores que a tornam grave impactam a institucionalidade democrática, isto é, colocam em risco as condições de realização e a estabilidade do Estado democrático de direito. Quando a autoridade, fundada na soberania popular, cuja fonte é o voto, se dissocia do poder, por incapacidade de mobilizar os meios legítimos de coerção, a crise se instala.
Caso o governo prefira evitar desgastes e postergar temas espinhosos, talvez se veja, mais à frente, constrangido a fazê-lo, em contextos ainda mais difíceis. Por isso, creio que a análise das condições objetivas atuais deveria levar em conta os riscos implicados na eventual deterioração do quadro, sabendo-se que tal degradação reduziria o repertório de opções para a ação política.
Sejamos francos e vamos direto ao ponto decisivo:
(1) Governadores não comandam as polícias estaduais, civis e militares, embora esta impotência varie no tempo e no espaço, e haja aí gradações relevantes. Não por incompetência dos executivos estaduais ou deslealdade dos comandantes, mas por processos internos de autonomização ilegal de segmentos, movidos por interesses específicos (ligados à segurança privada informal e ilegal, por exemplo), cumplicidades corporativas e envolvimentos criminosos. Essas conexões horizontais cruzam e cortam os eixos de hierarquia e disciplina, nas PMs, eixos que sequer existem nas polícias civis, as quais, por vezes, se parecem mais a arquipélagos de baronatos feudais do que a instituições internamente articuladas por mecanismo de direção e controle. Não há como pensar a penetração do crime na política -fenômeno do qual as milícias fluminenses constituem apenas uma manifestação particularmente ostensiva- dissociadamente da politização dos policiais. Quem duvidar pode tirar as próprias conclusões, assistindo aos canais ativos no Youtube, conduzidos por policiais ou que se dedicam a entrevistá-los, cujo conteúdo sobrepõe militância “bolsonarista”, defesa de execuções extra-judiciais e da prática de tortura, agressões acintosas ao Supremo Tribunal Federal e reiterada sustentação de autonomia inconstitucional das polícias (autonomia que interpreto como a formação de um enclave institucional refratário à autoridade política, civil, republicana). A dificuldade do STF em impor obediência a suas decisões, no âmbito da ADPF 635, demonstra, à exaustão, a tese aqui exposta. A politização das polícias não se restringe a manobras de cúpula, determinando ativismo ilegal, seletivo e dirigido, como no episódio da PRF, no segundo turno das eleições, em outubro de 2022. A inação, o absenteísmo ou a mera negligência por vezes correspondem à contraface da mesma dinâmica transgressora. E os impulsos ilegais podem derivar de núcleos decisórios alheios às colunas de comando e controle, assentadas em hierarquia e disciplina. Na anarquia, prospera a politização que se tem constatado crescente, e dela decorre a hipertrofia da anarquia, alimentando ciclo vicioso deletério.
(2) Nas polícias civis, há, entre outros, dois problemas chave (que também ocorrem nas PMs, mas com outros aspectos): a fratura entre dois universos, delegados e agentes, não só tem suscitado tensões insuportáveis e desagregadoras, como tem reduzido a efetividade do trabalho investigativo, seu atributo por execelência. Os delegados aspiram à carreira jurídica (elevando-se à condição de juízes de instrução) e operam com os inquéritos e o indiciamento como simulacros de um poder que não alcançam. Os agentes, sentindo-se explorados e não raro humilhados, vêem sua carreira limitada, desde a origem, em contraste com os privilégios de seus chefes: possibilidades de ascensão, patamares salariais, prestígio social. Por outro lado, o inquérito acaba duplicando o tempo do processo judicial, tornando burocrática e formalista a etapa investigativa.
(3) As PMs são obrigadas, por legislação infraconstitucional -apoiada no artigo 144 da Constituição-, a reproduzir o modelo organizacional do Exército, sem que compartilhe com este as destinações constitucionais. Em outras palavras, a estrutura organizacional das polícias militares não corresponde a suas necessidades operacionais e não é adequada ao cumprimento de suas funções.
(4) Postas lado a lado, as duas polícias estaduais exponenciam suas respectivas disfuncionalidades, em vez de as reduzirem, por efeito de cooperação e mútua complementação.
(5) O Ministério Público não exerce o controle externo da atividade policial, seu dever constitucional. Os casos de brutalidade policial letal (no estado do Rio de Janeiro, entre 2003 e 2022, 20.791 pessoas foram mortas por ações policiais, e menos de 10% dos casos suscitaram denúncias do MP), corrupção (como sistema de promiscuidades e acordos padronizados e permanentes, não como desvios de conduta individuais e eventuais), abusos diversos -com inegável viés racista- e descumprimento de finalidade atingiram níveis inaceitáveis, em muitos estados, e não têm provocado reações à altura por parte dos MPs estaduais.
(6) As condições de trabalho sobretudo de agentes e praças não são, via de regra, compatíveis com sua importância e a magnitude dos riscos envolvidos. O sofrimento psíquico tem levado à drogadição em larga escala e suicídios em números elevados, assim como o desgaste físico, resultante do segundo emprego (com frequência, informal e ilegal), tem concorrido para a queda de rendimento profissional.
Note-se que os itens iniciais se incluem entre as responsabilidades do Estado. Há outros temas estratégicos (intimamente ligados), ainda na esfera estatal:
(7) As perícias, cuja independência relativamente às polícias civis (e não só) tem de ser garantida e que necessitam de investimento em formação, tecnologia e condições de trabalho, além de convênios com universidades e institutos de pesquisa. Assinale-se que os homicídios dolosos são os crimes mais graves e vitimam aproximadamente 50 mil brasileiros por ano -marca escandalosa, seja pelo volume, seja por atingir desproporcionalmente a população negra. Enquanto isso, as taxas de elucidação, quando não simplesmente ignoradas, são baixíssimas. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, giram em torno de 12%, o que significa que 88% dos homicídios permanecem impunes.
(8) Finalmente, mas absolutamente crucial, é necessário focalizar, com senso de urgência, o sistema penitenciário. A Lei de Execuções Penais, não raro, é descumprida. Descumprir a lei é crime. Este permanece impune e não corrigido. As consequências são trágicas: não apenas pelas violações aos direitos elementares que o descumprimento implica, mas também porque reside no descontrole das unidades prisionais o fortalecimento de facções criminosas, sua liberdade de ação fora dos presídios e o impulso para suas manifestações sangrentas. Assim nasceu o PCC, em 1992, e essa foi a origem dos ataques recentes no Rio Grande do Norte. Não há como conter a criminalidade sem respeitar a lei no sistema penitenciário.
(9) O fortalecimento das facções decorre de múltiplos fatores, entre eles, e com destaque, da expansão veloz e contínua da população prisional, no contexto caracterizado pelo sistemático e continuado desrespeito à LEP. O contingente que mais tem crescido (saltando, no intervalo de pouco mais de dez anos, de 15% a cerca de 35% -entre as mulheres, são 62%) é aquele composto pelos condenados ou acusados (aguardando julgamento) por tráfico de drogas. Relatórios das Defensorias Públicas têm indicado que a maior parte deste subgrupo é formado por varejistas do comércio ilegal de substâncias ilícitas, presos em flagrante, frequentemente sem porte de arma, prática de violência ou laço orgânico com organização criminosa. São diaristas que combinam tarefas informais e ilegais, na busca do “ganho” cotidiano. Uma vez confinados em unidade prisional comandada por facção, negociarão sua sobrevivência ao preço de lealdade a ser prestada subsequentemente à saída da prisão, cinco anos adiante. Em resumo: o encarceramento em massa está contratando violência futura e entregando força de trabalho jovem aos agenciadores do crime. E o custo humano e material é tão gigantesco quanto irracional é esta dinâmica perversa. De que causas deriva este efeito? As mais imediatas estão sintetizadas na categoria “flagrante”. Aqui está um dos segredos de nossa debilidade, o nó que engata modelo policial inadequado e lei de drogas irracional. Vejamos por quê: a polícia mais numerosa, presente em todo o país, é a Polícia Militar. A instituição é pressionada por políticos, meios de comunicação, opinião pública e políticos a produzir, que ela decodifica como demanda por encarceramento. Para ser produtiva, precisa prender. Entretanto, à PM é vedada a investigação, segundo o artigo 144 da Constituição. O que fazer, sendo instada a prender, não podendo investigar? Prender em flagrante. Quais os crimes comumente passíveis de prisão em flagrante delito? Incidirão sobre eles o investimento das energias da segurança pública. Qual será, então, o principal instrumento da PM? A lei de drogas. Esta será aplicada na captura de transgressores para cumprir cotas e demonstrar efetividade. Sempre em flagrante. O grande tráfico -por exemplo, de cocaína-, que mobiliza bilhões de dólares ao redor do mundo, requer investigação para ser identificado, não se dá ao flagrante. Portanto, articulam-se o modelo policial -de que o Brasil é titular quase único no mundo- com nossa nefasta lei de drogas para promover o encarceramento, cuja voracidade e cujo foco (duas faces da mesma moeda, porque a escala decorre justamente do foco no varejo) tornam a aplicação da LEP e o controle do sistema penitenciário cada vez mais improváveis e desafiadores. Em outras palavras, urge desatar o elo entre o flagrante, o varejo, a política de drogas, o modelo policial e o crescimento veloz da população carcerária, se quisermos promover dois objetivos fundamentais: conter o fortalecimento das facções criminosas e recuperar milhares de jovens que poderiam perfeitamente ser integrados e que o país está empurrando para o crime e a morte. Se caírem no cárcere, no ambiente sem lei (sem LEP), estarão condenados, não à pena ditada pela Justiça, mas ao crime, no futuro, em nome da sobrevivência, no presente.
(10) Armas têm sido corretamente consideradas questão chave pelo governo federal, que tem se empenhado em reverter as decisões desastrosas do governo Bolsonaro. É consabido: mais armas acessíveis, mais crimes, mais acidentes, mais mortes, mais suicídios, mais violência doméstica, mais feminicídio, criminosos mais armados. Entretanto, seria indispensável ir além e organizar um mutirão nacional contra o tráfico de armas, mobilizando as instituições da segurança pública e fortalecendo o centro de investigação da PF, com recursos humanos, materiais e o estado da arte em tecnologia. Não faz sentido promover banhos de sangue em favelas, transformando-as em teatros de guerra para combater grupos armados. O objetivo obsessivo das forças de segurança deve ser a identificação das vias de alimentação dos arsenais criminosos.
Na sequência, menciono dois pontos em que se cruzam política e segurança pública, e que me parecem essenciais:
(11) O descrédito das instituições da segurança e da Justiça criminal sobretudo nos territórios vulneráveis não é novidade, nem foi produzido nos últimos anos. Pelo contrário, os aspectos regressivos, obscurantistas e autoritários que marcam o período mais recente na política é que, em boa medida, são tributários desse descrédito (tema ao qual dediquei um livro: O Brasil e seu Duplo [Todavia, 2019]). Uma reconstrução democrática que não seja fugaz e facilmente reversível terá de incluir um processo difícil, contraditório e complexo que talvez pudesse ser denominado repactuação (sempre com nuances locais e específicas) entre as polícias e as comunidades, em torno da comum rejeição ao racismo e ao patriarcalismo de viés violador. Serão necessárias coragem e criatividade, mas um movimento nesse sentido, embora pareça vago e abstrato, representaria um marco, um ponto de inflexão numa trajetória de afastamento progressivo e tensões crescentes. Pessoalmente, vivenciei duas experiências marcantes e positivas dessa natureza -embora descontinuadas em seus desdobramentos, fruto da descontinuidade política. Não creio que sejam apenas episódios fortuitos da memória privada. São ilustrações documentadas de boas práticas esterilizadas por fatores circunstanciais.
(12) Por fim, gostaria de me deter em breve reflexão sobre condições políticas que, hoje, limitam avanços, mas, paradoxalmente, podem impulsioná-los. Refiro-me à amplitude da coalizão que forma o governo Lula. É verdade que, em nosso país, confinaram-se aos guetos das esquerdas bandeiras como reforma policial e direitos humanos, repactuação antirracista e controle externo das polícias, redução do encarceramento e revisão da política de drogas. Contudo, esse confinamento e essa identificação ideológica não ocorrem em outros países, nem seria, por assim dizer, natural. Quem ignora o vínculo genealógico dos chamados direitos humanos com as tradições judaico-cristãs e com as revoluções burguesas nos Estados Unidos e na França, no século 18? Quem negaria suas raízes liberais? O próprio Marx o reconheceu -aliás, criticamente. Na resistência à ditadura instalada em 1964, estiveram juntos operários, empresários, segmentos religiosos de extrações diversas. O que ocorre no Brasil é lamentável e tem empurrado para as franjas do sistema político e para o sectarismo algumas bandeiras absolutamente fundamentais para a dignidade humana e a democracia, bandeiras que poderiam e deveriam ser abraçadas por conservadores, liberais e progressistas, porque interessam a todos, mesmo que fossem valorizadas por perspectivas diferentes.
Desde os anos 1990, sustento, em minha militância pela reforma das polícias, da política de drogas e do sistema penitenciário, que a legalidade é nossa utopia. Se as polícias respeitassem a Constituição, a vida nas favelas sofreria uma verdadeira revolução. Se as polícias cumprissem a lei e respeitassem rigorosamente a dignidade dos cidadãos, de todas as raças e classes, em todos os espaços, a vida popular daria um salto de qualidade. Se as leis fossem cumpridas nos presídios (a LEP), haveria mudanças profundas, com amplas repercussões. É pedir demais que se cumpram as leis, que se admitam os limites legais? De que modo esse postulado confrontaria princípios liberais? Por que o legalismo contraditaria os princípios conservadores? E se, além do apreço à legalidade constitucional, conservadores e liberais aplicassem a racionalidade para avaliar, com isenção e objetividade, o que o Brasil está fazendo consigo mesmo, na chamada guerra às drogas -ou tolerando a brutalidade policial letal e estimulando o encarceramento em massa de jovens varejistas do mercado ilegal de substâncias ilícitas-, nós poderíamos construir uma nova e inusitada aliança (mas perfeitamente coerente e plausível) por um país melhor, menos desigual, violento e racista.
Quem melhor situado que Flavio Dino, ministro da Justiça do governo Lula, para liderar um movimento dessa natureza? Concluo, afirmando, convicto: uma iniciativa desse porte teria um impacto transformador, mesmo que não fosse imediatamente vitorioso.
Fraternalmente,
Luiz Eduardo Soares
* Antropólogo, cientista político e escritor. Foi secretário nacional de Segurança Pública e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro. Artigo publicado originalmente em red.org.br
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