As pessoas trans estão invisibilizando as mulheres?
Querida Djamila Ribeiro,
Demorei vários dias para começar a escrever essa carta. Fui pesquisar mais sobre você. Já tinha lido algumas das suas publicações: Lugar de Fala e também o Pequeno Manual Antirracista. Este último comprei e depois recebi outro exemplar gratuitamente, e divulguei amplamente. Adorei. Assisti novamente ao programa na Roda Viva. Amei saber que sua mãe e avó foram empregadas domésticas e que seus bisavôs foram escravizados, e que você quebrou esse ciclo. Parabéns, mesmo! Eu gostei muito que você falou que é do candomblé. Temos nossas diferenças, eu sou católico apostólico romano, mas as diferenças fazem parte e está tudo bem assim! Admiro a sua história de vida e sua luta.
Você é reconhecida nacional e internacionalmente por sua atuação como filósofa, acadêmica e feminista negra, sobretudo pela discussão que promove sobre raça e gênero, e pela utilização das mídias sociais para dar visibilidade a essas causas. Você é o que Antonio Gramsci definiu como intelectual orgânica.
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É de particular relevância seu livro Lugar de Fala, que trata da voz na sociedade de grupos de alguma forma inferiorizados, que sofrem opressões, desigualdades, discriminações, como as pessoas trans, entre outras, tendo em vista a polêmica que está ocorrendo sobre seu artigo de opinião, publicado na Folha de S.Paulo em 01/12, no que você afirmou que a utilização de termos como “pessoas que menstruam”, “pessoa gestante”, “pessoas com mamas” com uma forma de contemplar também especificidades de homens trans, seria uma “violência porque, mais uma vez, decidem invisibilizar a realidade material de mulheres.”
Eu sou Toni Reis, tenho 58 anos, sou casado com David desde 1990. Temos dois filhos e uma filha, os três são negros. Com eles, temos sentido realmente o que é o racismo em situações que têm ocorrido que jamais teriam acontecido se fossem brancos. Tenho 40 anos de luta pelos direitos humanos da nossa comunidade LGBTI+. Sou formado em letras e pedagogia, tenho especialização em sexualidade humana e em dinâmica dos grupos, sou mestre em filosofia, como você. Também sou doutor em educação e fiz dois pós-doutorados em educação com ênfase em questões LGBTI+.
Você pode estar se perguntando: por que que um homem branco gay está se posicionando sobre pessoas trans? Com que direito? É que fui instado por Jovanna Baby, uma das primeiras ativistas e militantes travestis do Brasil. Em 1993, de forma pioneira, ela organizou a realização do 1º Encontro de Travestis e Liberados, no Rio de Janeiro, do qual eu e o David participamos. Entramos na cota dos liberados! Ao final do Encontro, foi realizada uma das primeiras manifestações LGBTI+ de rua no Brasil. Eu e o David andamos segurando uma faixa. E junto com as demais pessoas, tomamos banho de água jogada contra nós manifestantes dos prédios na Avenida Rio Branco. A partir disso e de diversos outros acontecimentos em nossas vidas, também sabemos o que é LGBTIfobia.
Aproveito essa oportunidade para dizer que, dos 14 aos 23 anos, eu fui um transfóbico irracional, e vou explicar por quê. Na minha infância e adolescência, nos anos 1960 e 1970, no interior do Paraná, a única pessoa LGBTI+ que havia de referência nos meios de comunicação era a querida atriz Rogéria, e as pessoas mais instruídas nesse ambiente onde eu morava falavam para mim, um jovem gay, “ou você é mulher como a Rogéria, ou você tem que ser homem”. Eu não me identificava com nenhuma das opções que me deram. Só fui me “curar” dessa irracionalidade em relação às pessoas trans depois de muita leitura e devido a uma situação sui generis que aconteceu comigo na Itália, durante os três anos que morei na Europa entre 1989 e 1991, quando tive que morar um mês na rua em Milão e quem me acolheu e me ajudou a sobreviver foram as travestis brasileiras. Hoje eu sou um “transófilo”. Prova disso é que as duas melhores amigas que eu tenho são pessoas trans, Giorgette Bigfield e Rafaelly Wiest, entre outras mais.
O objetivo dessa carta não é de repudiar, nem de cancelar, mas sim de provocar uma reflexão. É uma discussão não só acadêmica e filosófica, mas sim de vivências de opressões e vulnerabilidades. O objetivo é apontar que você e as pessoas trans estão na mesma trincheira da luta pelos direitos humanos, e que não podemos deixar ninguém para trás. Como afirmou Hannah Arendt, “pluralidade é a lei da terra”. A pluralidade humana é essencial na política. E a luta pelos direitos humanos é plural e política.
As pessoas trans, na sua maioria, como se pode ver nas redes sociais, se sentiram ofendidas com algumas frases que apareceram em seu artigo: “Mesmo com a pretensa ideia de querer incluir homens trans, o termo [‘pessoas que menstruam’] apaga a realidade concreta das mulheres”. Além da afirmação que os homens trans estariam praticando uma “violência” contra a realidade das mulheres cisgêneras. O Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), por exemplo, afirmou que “seu texto pontua nossos posicionamentos como de segunda ordem. Não somente somos marginalizados/es de toda a estrutura social, mas seriamente excluídos/es e destituídos/es da fala como ferramenta de enfrentamento.” Infelizmente, essas frases suas trazem o que o Ibrat chamou de colonialismo, isto é, importar modos de outras culturas com histórico de dominação imperialista, nas quais esse discurso contra pessoas trans já vem se manifestando há vários anos no meio feminista. Não precisamos reproduzir isso no Brasil. Precisamos respeitar o espaço de cada um.
Não é só a academia e os livros que nos ensinam sobre as vivências. Eu respeito muito as vivências e os sentimento das pessoas. Nesses 40 anos de convivência com as pessoas da diversidade, já tive, tenho e terei debates e embates, mas para as pessoas trans eu tenho um carinho, um respeito e uma compreensão muito maiores pelo sofrimento e as histórias de vida que as mesmas têm. A carga de rejeição é muito grande. Pode até parecer que há pessoas trans agressivas, pelas reações que sua observação sobre homens trans provocou, mas há uma explicação simples para isso. Muitas dessas pessoas passaram a vida sendo agredidas por outrem, e devolvem essa agressão quando sentem que estão sendo ameaçadas.
Dentro das letras que compõem a sigla LGBTI+, as pessoas trans são sem dúvida as que mais sofrem preconceito, discriminação e violência, sobretudo porque são mais visíveis. E esse processo começa cedo na vida delas. Entre os 120 pais, mães e responsáveis de crianças e adolescentes trans que foram entrevistados em uma pesquisa realizada em 2021 (Grupo Dignidade/UNESCO), oriundos de 62 cidades em 17 estados brasileiros, 77,5% informaram que seus filhos e suas filhas, crianças e adolescentes trans entre 5 e 17 anos, já foram vítimas de bullying transfóbico no ambiente escolar. Entre os adultos autores das violências, que podem ser físicas, verbais, emocionais ou cyberbullying, 65% eram profissionais das instituições de ensino, sendo que 56% deles eram professores/as. Além disso, nem todas as crianças e adolescentes trans contam com o apoio de suas famílias. Algumas pesquisas revelam que a maioria das trans femininas foi expulsa ou abandonou o lar muito cedo, apoiando-se no trabalho informal e na prostituição. A hostilidade do ambiente educacional o torna insuportável e motivo de evasão escolar e abandono dos estudos.
Entre outubro de 2020 e setembro de 2021, a cada dez assassinatos de pessoas trans no mundo, quatro ocorreram no Brasil, segundo dados da organização Transgender Europe. Ainda, do total de 4.042 assassinatos catalogados pela organização entre 2008 e 2021, 1.549 aconteceram no Brasil. Ou seja, sozinho, o país acumulou 38,2% de todas as mortes de pessoas trans do mundo no período. Outro levantamento aponta que houve 111 homicídios de pessoas trans em 2021 no Brasil, sendo 97,3% mulheres trans e travestis. A maioria (66%) tinha menos de 30 anos. A maioria (43,5%) foi morta por tiros, seguido de facadas (21,7%).
Em outras palavras, a população trans é uma das mais marginalizadas e violentadas no Brasil, cuja cultura predominantemente machista e sexista infelizmente referenda essas agressões. Não podemos hierarquizar as opressões existentes na sociedade, como o racismo, o machismo, o capacitismo, a LGBTIfobia, entre outras. A luta antirracista deve ser de todas as pessoas, assim com a luta contra a LGBTIfobia e outras formas de opressão. A pessoa não precisa ser sujeito para se engajar nessas questões, apenas precisa ter empatia.
Precisamos desenvolver a competência cultural, que é a capacidade de uma pessoa interagir, trabalhar e desenvolver efetivamente relacionamentos significativos com pessoas de várias origens culturais. A origem cultural pode incluir as crenças, costumes e comportamentos de pessoas de vários grupos. Adquirir a competência cultural é um processo que ocorre ao longo da vida toda, envolvendo o aumento da autoconsciência, o desenvolvimento de habilidades e comportamentos sociais em torno da diversidade e a aquisição da capacidade de defender os outros. A competência cultural vai além da tolerância, o que implica estar simplesmente disposto/a a ignorar as diferenças. Em vez disso, a competência cultural inclui o reconhecimento e o respeito à diversidade através de nossas palavras e ações em todos os contextos (DE GUZMAN, M. R. T. et al., 2016)
Concordo com você que falar sobre pessoas que menstruam, têm útero e gestam é descrever as mulheres de forma genérica e de uma maneira longe de completa, da mesma forma que a epidemiologia agrupou, sob o rótulo “homens que fazem sexo com homens”, gays, bissexuais masculinos, travestis, homens heterossexuais que eventualmente tenham relações sexuais com outros homens. Por outro lado, é preciso reconhecer as especificidades dos homens trans. Estas especificidades também não podem ser invisibilizadas. Se a sociedade fosse mais informada sobre elas, talvez teria mais compreensão e não haveria necessidade de cunhar os termos que lhe deixaram incomodada.
Nessa discussão, se está incorrendo no risco de reforçar o binarismo de gênero, com apenas uma forma de ser feminina, de ser “mulher”, seja de que raça ou etnia for, e outra de ser masculino, sem lugar para a diversidade inerente à raça humana, como aponta Judith Butler, entre outras autoras. Está ficando cada vez mais evidente na sociedade que não é o sexo da pessoa que determina sua orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero e, ainda, as pessoas transexuais e não binárias estão contribuindo para quebrar essa inflexibilidade relativo aos gêneros. Se a pessoa se sente homem, ou se sente mulher, ou combinações dos dois, independente do seu “sexo biológico”, nós temos que aprender a respeitar e o Estado deve atender às suas necessidades específicas – todas as pessoas devem ser incluídas. Trata-se da individualidade da pessoa, e ela tem o direito de decidir por ela mesma. Emmanuel Kant e Marilena Chauí nos ensinam sobre a diferença entre autonomia e heteronomia. Agora, quando nos dizem como nós temos que ser, estão tirando nossa autonomia.
Por outro lado, é justamente a indignação quanto à forma como têm sido marginalizadas e invisibilizadas, em conjunto com a coragem de serem o que são, que tem feito com que nos últimos anos as pessoas trans e não binárias vêm estando na vanguarda de mudanças cada vez mais marcadas nas percepções do que seria “normalidade” em se tratando de manifestações de gênero.
Também citando Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se”. E de forma análoga, não se nasce homem, torna-se. Concordamos que nenhum ser humano deve ser reduzido a questões biológicas. Somos frutos também de questões psicológicas, sociais, culturais, entre outras.
Afinal, a população trans é relativamente tão pequena, ainda mais a de homens trans. De que forma teriam o poder de “invisibilizar a realidade material de mulheres”, as quais segundo o IBGE compõem 52,2% ou mais da sociedade brasileira?
E como você mesma disse, “O feminismo deve contemplar todas as mulheres, é necessário perceber que não dá pra lutar contra uma opressão e alimentar outra.”
Para concluir, “Se queremos desenvolver uma perspectiva interseccional, a comunidade trans está nos mostrando qual caminho…”. Dra. Angela Davis.
06 de dezembro de 2022
Prof. Dr. Toni Reis
Diretor Presidente da Aliança Nacional LGBTI+
Presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas
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