Quando, no Festival da Record de 1967, Caetano Veloso e Gilberto Gil lançaram o Movimento Tropicalista, com Alegria, Alegria e Domingo no Parque, uma das suas intenções era romper com o formato tradicional da, àquela altura, já vetusta MPB, a chamada Música Popular Brasileira, com suas canções de protesto.
Mas seria um grande equívoco imaginar que essa ruptura significava o surgimento de uma nova música alienada e apolítica. O que Caetano e Gil sugeriram era tão poderoso que não passou despercebido pelos brucutus da ditadura militar. Um ano depois, quando as forças de repressão avaliaram quem eram os músicos mais perigosos, que precisavam ser presos e contidos, escolheram três deles. Um era da velha MPB: Geraldo Vandré. Os outros dois eram os tropicalistas Caetano e Gil.
Caetano hoje faz 80 anos sem nunca ter sido alienado. Sua produção artística sempre emanou política. Sua atitude intelectual nunca se omitiu. Ao longo da vida, Caetano ofereceu apoio a projetos de políticos variados, como Ciro Gomes, do PDT, e o ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos Mangabeira Unger, quando ensaiou ser candidato à Presidência em 2005. Agora, Caetano declara seu apoio à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT.
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Depois de Domingo, um disco mais romântico dividido com Gal Costa, Caetano apresenta sua porta de entrada no tropicalismo com o seu Tropicália (o álbum-manifesto do movimento também tem o nome de Tropicália, acrescido de Panis et Circensis, expressão em latim que quer dizer “Pão e Circo”). No disco, a canção que dá título ao álbum já conta com todas as credenciais do pensamento político de Caetano, ao descrever o Brasil como um “monumento bem moderno” no qual “uma criança, sorridente feia e morta estende a mão” e onde “os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”.
Talvez um dos principais sinais de alerta que levaram os militares a eleger Caetano e Gil como seus alvos de prisão em 1968 foi o discurso que o compositor baiano de Santo Amaro fez ao ser vaiado no Festival Internacional da Canção (FIC) quando tentava cantar É Proibido Proibir. Nesse discurso, irritado com as vaias que recebia justamente da plateia de esquerda formada por militantes estudantis, Caetano escancara o seu projeto. Mostra que havia uma contradição enorme entre o discurso daquela esquerda e sua atitude: aquela turma se dizia progressista no discurso e era extremamente careta, conservadora nas suas atitudes, no seu comportamento.
“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”, enfrenta Caetano. “Vocês vão sempre matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada!”.
Ouça aqui o discurso de Caetano em É Proibido Proibir:
Nelson Rodrigues, um escritor conservador, escreveu à época uma crônica que resume a atitude da plateia de esquerda que vaiou Caetano. E que mostra como Caetano estava à frente do seu tempo e o quão conservadores eram aqueles que o vaiavam:
“A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foi uma monstruosa vaia (…) Era um concorrente que vinha ali, cantar; simplesmente cantar. Mas os jovens centauros não deixaram”.
Caetano fez seu discurso no FIC, no Teatro Tuca, em São Paulo, no dia 15 de setembro de 1968. No dia 27 de dezembro daquele mesmo ano, ele e Gil foram presos. A intenção dos militares era prender na sequência Geraldo Vandré, mas ele não foi encontrado em casa. Vandré acabou se escondendo na casa da mãe de Aracy de Carvalho, a mesma mulher do escritor Guimarães Rosa que, na Segunda Guerra Mundial, ajudou perseguidos judeus a fugir da Alemanha para o Brasil.
Depois de preso, Caetano e Gil acabaram exilados em Londres, na Inglaterra. O exílio foi motivo de extrema tristeza para Caetano. Como ele conta em London, London. “I cross the streets without fear/Everybody keeps the way clear/I know, I know, there’s no one here to say hello” (“Eu cruzo as ruas sem medo/Todo mundo mantém o caminho limpo/Eu sei, sei, não há ninguém aqui para eu dizer alô”). Uma tristeza tão forte que fez seu amigo Roberto Carlos escrever sua única canção política, Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos: “As luzes e o colorido/Que você vê agora/Nas ruas por onde anda/Na casa onde more/Você olha tudo e nada/Lhe faz ficar contente/Você só deseja agora/Voltar pra sua gente”.
Resumos da realidade brasileira
Caetano retornou do exílio em 1972. Embora sua arte esteja longe de se resumir a isso, o comentário político nunca deixou de fazer parte das suas canções. Algumas de suas imagens são fortes resumos da realidade brasileira.
Em Fora da Ordem, Caetano espreme o sumo da tragédia nacional em um verso apenas: “Aqui tudo parece construção e já é ruína”. Ou nesta fortíssima imagem: “O cano do revólver/Que as crianças mordem/Reflete toda as cores/Da paisagem da cidade/Que é muito mais bonita/E muito mais intensa/Do que no cartão postal”.
“Enquanto os homens exercem/Seus podres poderes/Motos e Fuscas avançam/Os sinais vermelhos/E perdem os verdes/Somos uns boçais”, constata Caetano em Podres Poderes.
Somos, diz Caetano (no caso em Haiti, aqui em parceria com Gilberto Gil) um país onde “um deputado” assiste “em pânico mal dissimulado” um “plano de educação que pareça fácil, que pareça fácil e rápido” e “vá representar uma ameaça de democratização do ensino do primeiro grau”. E esse mesmo deputado defende “a adoção da pena capital”. Onde “o venerável cardeal” vê “espírito no feto e nenhum no marginal”. Caetano conclui: “O Haiti é aqui”.
Caetano Emanoel Viana Teles de Veloso nasceu em Santo Amaro, na Bahia, no dia 7 de agosto de 1942. Esta noite, ele nos brindará com uma live para comemorar seu aniversário ao lado de seus filhos, também músicos, Moreno, Zeca e Tom, e de sua irmã, a maravilhosa cantora Maria Bethânia. A live será transmitida pela Globo Play e pelo Multishow. Caetano faz 80 anos, mas o presente será nosso.