Tradicionalmente, em nosso país, a universidade vem lidando com o conhecimento oriundo de uma visão de mundo branca, hegemônica e universalizante, que conduz a um processo de homogeinização dos diferentes e de perda das identidades culturais brasileiras, não situando o processo de formação pluricultural da nação como fator básico ou preponderante no processo educativo.
Sabemos que as pessoas enxergam o mundo através de sua cultura, aproveitando os sentidos para codifica-lo. Os brasileiros suspeitam dos sentidos que não sejam a visão ou o tato, já que precisam ver para crer, pois afirmam que os olhos são o espelho da alma ou que uma pessoa estimada é bem-vista. Desta forma somos levados a construir o mundo real segundo os códigos da sociedade que fabrica ou modela o nosso corpo.
Por conta dessa concepção, a Lei 10639/03, que está completando vinte anos e versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira, bem como a Lei 11.645/08, que torna obrigatório o estudo da história da cultura indígena e afro-brasileira ainda não conseguiram ser uma realidade efetiva no país por sofrerem a influência da concepção européia do outro, entendido como diferente e inassimilável. Cabe assinalar que estas leis não prevêem a sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores (licenciaturas).
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Para o espirito burguês do Século 16, a supressão dos habitantes das Américas é uma forma de sublimar o outro que há em cada um, corpo morto, cadáver que um dia seremos. Desta forma, a morte é transferida, sendo projetada em outro ser, que pode ser morto, por não ser igual. Assim, com base na própria Bíblia judaico-cristã, que não aceitava outra fé como verdadeira, o europeu poderá usar e abusar do outro. Há, deste modo, uma aliança do cristianismo com o capitalismo, gerando todas as atrocidades cometidas contra negros e índios nas Américas. A Igreja, pela conversão e o capitalismo, por reduzir todos os seus valores ao dinheiro, vão acabar com as alteridades.
O corpo passa a ser meio de produção e, desta ilusão, surge a sensação de autonomia, sendo que nela se edificou o individualismo burguês, gerador de um corpoprodutor, corpo-instrumento, que precisa ser treinado, modelado, disciplinado, fortificado. O outro passa a ser o corpo-dominado, que funciona como ferramenta, sendo corpo-alienado, que se troca por um salário ou corpo-mercadoria, vendido como escravo.
O corpo do brasileiro perdeu o seu ritmo natural, na medida em que foi violado por condições histórico-culturais concretas. Sob o ângulo das classes sociais antagônicas, milhões e milhões de brasileiros são vistos como corpo-marginal, pois pertencem aos excluídos ou afastados dos bens e benefícios materiais e culturais do mundo capitalista.
A Lei 11645/08, ao lidar com a pluralidade brasileira, demonstrou que cada grupo cultural criou o seu espaço do sagrado e do profano, do maravilhoso e do perverso. Desta forma, apesar do corpo do trabalhador ser maltratado por inúmeras horas fora de casa, com trabalho pesado e alimentação inadequada, aliados a pouco descanso, o segmento negro, indígena e mestiço, maioria da população do país, usa o corpo como meio de contato com a transcendência, com os ancestrais e os orixás, já que o negro e o povo originário rezam dançando. Segundo afirma Muniz Sodré, desde o século 16, através das estratégias da Rainha Nzinga (de onde veio a palavra ginga) o negro utiliza o balanço incessante e maneiroso do corpo, que faz com que ele se esquive e dance ao mesmo tempo, gingando, buscando seduzir o outro, envolvê-lo, enlaçá-lo, vencendo pela astúcia e malícia a força bruta.
Na cultura negra, o corpo foi caminho da formação de uma maneira própria de ser, de se autoafirmar, onde, através da dança, se transmite o envolvimento emocional, o sentimento de raiz e tradição, bem como uma plasticidade reveladora de uma cultura de resistência, onde se apresentam movimentos de autopreservação e continuidade cultural. O corpo negro abriga o orixá – força cósmica, energia da natureza, estabelecendo comunicação direta entre o sagrado e o profano. O que este corpo cria de júbilo, de energia, produz uma profunda diferença cultural, que não poderia deixar de ser levada em consideração numa proposta de educação.
A tendência da pluricultura que busca valorizar a cultura popular com a introdução das tradições negras e indígenas nos currículos escolares em todos os níveis de ensino nos mostra a necessidade de efetivação eficaz desta proposta, já que a pedagogia, tanto na cultura negra como na indígena, é totalmente iniciática, com uma didática específica que se funda no mito e no rito, elementos estruturadores dos valores e saberes dos grupos. Para tornar crianças e jovens competentes em vários sistemas culturais é preciso conhecê-los também de forma iniciática, numa metodologia que funciona desde dentro para desde fora.
Já existem várias experiências exitosas neste sentido, como o Projeto Irê Ayo da Dra Vanda Machado em Salvador, resultado de sua pesquisa de Mestrado e Doutorado na Faculdade de Educação da UFBA. O estudo consistiu em escutar, vivenciar e compreender o pensamento africano recriados nos terreiros e bairros negros. Isto implicou na compreensão dos acontecimentos cotidianos e de como estes afetam a formação dos educadores da Escola Eugenia Anna, as crianças e a comunidade do terreiro Ilê Axé Opo Afonjá. Tal compreensão permitiu a Dra Vanda Machado uma reflexão teórica para uma epistemologia contemporânea que a conduziu a uma pesquisa participativa, uma pesquisa ação e um encontro significativo com sua história de vida, com o pensamento africano e com a construção do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó, sua realização e ressonâncias, segundo afirmação da autora.
Os caminhos se apresentam e revelam a importância de tirar dos ombros a carga de pré-conceitos em relação ao outro, que é diferente porém necessário e tão importante como cada um de nós. Este é o maior desafio que os educadores brasileiros enfrentam. Precisamos procurar caminhos pedagógicos que viabilizem a produção intelectual acadêmica brasileira fora do sistema oficial de ensino, usando a riqueza da pluralidade cultural, gerando um novo professor para uma nova educação, seguindo os passos da Dra Vanda Machado.
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