O clima festivo era contagiante. O voo de Santiago do Chile para o Rio de Janeiro nunca foi tão animado quanto naquele 18 de junho de 1962. A bordo de um avião DC-8, da Panair do Brasil, os bicampeões mundiais de futebol se embebedavam de alegria e champanhe. Traziam na bagagem a icônica Taça Jules Rimet. Os capitães Mauro (1962) e Bellini (1958) não se continham. Eram os mais animados. Pelé, aos 21 anos, era um jovem tímido ainda. Uma lesão na segunda partida do torneio abreviara sua participação naquele mundial. Mané Garrincha, o grande nome do Brasil na Copa, assistia ao espetáculo dos amigos atônito, agarrado literalmente à poltrona. “Ele tinha pânico de voar. Os olhos dele nos acompanhavam quando mexíamos os braços para cima”, conta Ingrid Fricke, uma das aeromoças daquele voo, ao Congresso em Foco.
As imagens estão guardadas na memória da carioca de 84 anos. Ingrid faz parte do grupo de 5 mil ex-funcionários da Panair do Brasil, primeira grande companhia aérea do país, que deverão receber nesta sexta-feira (29) um pedido de desculpas formal do Estado brasileiro. Não haverá qualquer pagamento de pensão. A mesma Panair havia transportado a seleção campeã na Suécia em 1958. Dentro do avião, a alegria era a mesma. Fora dele, o país trocara a euforia dos “anos dourados” pelo silêncio imposto pelo golpe militar de 1964.
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Resistência pacífica
Durante semanas, a jovem Ingrid e dezenas de colegas aeromoças acamparam em frente ao Palácio das Laranjeiras, no Rio, para protestar contra o fechamento da Panair. Ignoravam os militares armados que as vigiavam, conforme registrado em foto, e contavam o que se passava a quem se aproximasse. “A empresa tinha grande história e um grande futuro. A intenção do acampamento era atrair as pessoas para divulgar o que acontecia. Elas ficavam indignadas, levavam até comida para a gente”, relembra.
A companhia foi fechada pela ditadura militar em fevereiro de 1965. Os empresários Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen, dois dos homens mais ricos do país àquela altura, perderam o lucrativo e glamouroso negócio da noite para o dia, com falsas explicações oficiais. Com eles, caíram os seus milhares de empregados.
Esta será a primeira vez que a Comissão de Anistia, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, reconhece uma perseguição política a funcionários e sócios de uma empresa abatida pela ditadura. Uma das contempladas, Ingrid fará novamente o voo Rio-Brasília, desta vez como passageira, para receber uma reparação histórica. “Eu ia muito a Brasília com a Panair antes mesmo de a cidade estar pronta. Era só barro. Minhas amigas e eu nos divertíamos muito”, explica.
Reconhecimento tardio
Ninguém sabe, ao certo, quantos dos empregados estão vivos. A grande maioria, a contar pelo tempo transcorrido, já partiu. Receberá a homenagem pós-morte. Estima-se que ao menos 18 pessoas suicidaram após perderem o emprego. Outras tantas tiveram morte precoce atribuída, por familiares, à falência indevida da companhia. Mário Wallace Simonsen, também dono da TV Excelsior, morreu de infarto um mês depois.
“A Panair é a maior peça de resistência contrarrevolucionária, com seus 5 mil funcionários. Muitos deles continuaram a se reunir anualmente por mais de 50 anos até a pandemia. É a chamada ‘Família Panair’”, conta o economista e empresário Rodolfo da Rocha Miranda, filho de Celso, falecido em 1986, e atual dono da empresa. Com sua falência levantada em 1995, a Panair existe hoje basicamente para preservar a própria memória.
No ano passado, a Comissão de Anistia, em nome do Estado brasileiro, reconheceu a perseguição e pediu perdão ao pai de Rodolfo. “A anistia permite que se corrija a biografia do meu pai e do Simonsen, que não quebraram a empresa, e de todos os seus funcionários. Precisamos esclarecer os fatos para que não se repitam. Mostrar todas as consequências de se viver sob um governo que não respeita a lei”, ressalta. “Mesmo perseguido, meu pai continuou com a cabeça em pé e tocou seus outros negócios”, acrescenta.
Como donos de uma companhia aérea, evidentemente eram grandes e poderosos empresários. Além da TV Excelsior, que resistia à ditadura, Simonsen era dono de empresas gigantes como a Companhia Eletromecânica CELMA, de manutenção de turbinas e aeronaves, o Banco Noroeste e a Comal, a maior exportadora de café do país, igualmente fechada pelo governo autoritário. Rocha Miranda havia fundado, ainda no início da indústria automobilística no país, a Motores Rolls-Royce do Brasil. Também foi proprietário da Ajax Corretora de Seguros, da Companhia Internacional de Seguros, da Prospec S.A., entre outras.
A tristeza do comandante
O comandante Edberto Vasconcellos Guimarães tinha 41 anos de idade e mais de 20 de casa em 1965, quando ficou sem emprego com o fechamento da aérea. A publicitária Andréa Borda Carrapito, de 63 anos, tinha oito quando o seu pai faleceu em decorrência de um câncer, agravado por uma depressão causada pelo encerramento abrupto da empresa. “Ele ficou vulnerável após a falência da companhia”, diz Andréa ao Congresso em Foco. “Ele falava para mim que estava muito triste por não poder voar pela Panair. Era apaixonado pela aviação e pela empresa”, conta a filha.
Ex-integrante da Força Aérea Brasileira (FAB), o comandante-chefe havia feito patrulhas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Registrava em filme os aviões, os aeroportos, os colegas e os pontos turísticos dos lugares que frequentava. Nos quatro anos que lhe restaram de vida, Bebeto Mãos de Seda (apelido ganhado pela suavidade de seus pousos) trabalhou em uma empresa aérea de transporte de cargas e como instrutor para novos pilotos. “Nesse período, mesmo muito pequena, me lembro de vê-lo chorar várias vezes. A situação da família ficou muito difícil. Meu pai não tinha qualquer militância política.”
Desculpas insuficientes
A paranaense Gudrun Tullii, a comissária Zuzu, foi aeromoça da Panair entre 1955 e 1958. Deixou a empresa por causa de uma regra interna que proibia o relacionamento afetivo entre tripulantes. Casou-se com o comandante Nelson Porto Tullii, que será anistiado pós-morte. Ele faleceu em 2019, aos 89 anos.
“A vida dele sempre foi a Panair. O fechamento afetou todos nós psicologicamente”, lembra ela, hoje com 88 anos. Com família para cuidar, o comandante virou piloto da Varig, companhia que assumiu quase todo o espólio aéreo da Panair.
Zuzu lembra do orgulho que ela e todos ao seu redor tinham de trabalhar em uma das maiores aéreas do mundo. “Os funcionários da empresa, naquela época, tinham crédito de imediato em qualquer loja. A Panair foi um amor da minha juventude. Voei todas as rotas, Beirute, Roma, Londres, Frankfurt, Hamburgo, Lisboa e tantas outras”, relembra. Pelos corredores da aeronave, distribuía comida e bebida fartas, entre talheres de prata e copos de cristais, marcas da companhia.
Para ela, o pedido de desculpas do Estado brasileiro é positivo, mas não corrige o passado. “Quando eles cassaram indevidamente a empresa foi um golpe, um crime. Tem muito mais é que se retratar mundialmente”, defende. “Essa anistia é uma coisa muito bonita de se ver”, considera. Entre as principais lembranças da juventude, voos internacionais com as seleções brasileiras de futebol e basquete e com personalidades da época, como o jornalista Heron Domingues, o seu “Repórter Esso”.
Julgamento pedagógico
O advogado Wilson Quinteiro, da Associação de Defesa dos Direitos e das Pessoas Humanas (Adecom), está à frente do pedido de anistia coletiva. Para ele, o julgamento desta sexta tem caráter pedagógico.
“Além de aliviar a alma de quem continua vivo e familiares que buscam o pedido de desculpas, anuncia à nação que o regime de exceção nunca se justifica. Gera incertezas, prejuízos, insegurança jurídica e atinge os direitos fundamentais da pessoa humana”, afirma. “O julgamento coincidiu com a circunstância deste momento, em que se fala de tentativa de golpe. Esse processo me dá muita convicção da tese por mim levantada de inexistência de prescrição em caso de violação dos direitos da pessoa humana. Não é uma questão de ideologia política”, completa.
Professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida reforça o caráter pedagógico do julgamento desse caso. “As pessoas foram dormir empregadas e acordaram sem emprego. Há farta documentação que comprova que houve perseguição política. É a primeira vez que um coletivo de funcionários é reconhecido como anistiado político no Brasil. Eles só pedem o reconhecimento disso, nada mais”, afirma Eneá.
Além da política
Finalista do Prêmio Jabuti de Literatura em 2006, com o livro Pouso Forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar (Editora Record), o jornalista Daniel Leb Sasaki estuda o assunto há mais de 20 anos. “A Panair era símbolo do país. Um orgulho da aviação nacional. A empresa estava bem e, de repente, teve suas instalações ocupadas por tropas”, explica o jornalista, ao relembrar o choque causado na opinião pública com o fechamento da companhia.
Para ele, além da política, também pesou a pressão econômica. “O governo começou a baixar decretos-leis contra a empresa. Quando a Panair foi fechada, os aviões a jato foram arrendados para a Varig e a Cruzeiro, que participaram da trama para que não houvesse continuidade dos seus voos. Eles pagavam metade do preço do mercado internacional pelo aluguel dos aviões. Empresas estrangeiras não podiam alugar. A Varig e a Cruzeiro foram protegidas”.
Decolagem, voo e queda
Depois de 31 anos de existência, após começar como Nyrba (New York-Rio-Buenos Aires Line) e passar pelas mãos da Pan Am, ambas norte-americanas, a Panair teve seu controle transferido em 1961 para Rocha Miranda e Simonsen, empresários brasileiros com forte atuação nos setores de seguros e café, respectivamente.
No dia 10 de fevereiro de 1965, um decreto do governo militar interrompeu todas as atividades da companhia, alegando “irrecuperável situação financeira”, o que, como atestou a Comissão da Verdade, não correspondia aos fatos. Cinco dias depois, foi decretada a falência da empresa, resultando na demissão de 5 mil funcionários e na expropriação do patrimônio.
No mesmo dia em que os voos foram interrompidos, a Varig assumiu as rotas da Panair, gerando suspeitas a respeito de um possível acordo entre os militares e a companhia aérea gaúcha, que então se consolidou como uma grande potência nacional.
Em 2020, a 14ª Vara Federal Cível do Rio de Janeiro decidiu que os herdeiros de Celso da Rocha Miranda deveriam receber uma indenização de R$ 104 mil pelos danos causados pela ditadura; Rodolfo, um dos herdeiros, optou por não solicitar nova compensação.
Estudiosos do assunto consideram que a perseguição à empresa estava associada à combinação de três fatores: a proximidade de Celso Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen com o ex-presidente Juscelino Kubitscheck, a linha editorial da TV Excelsior contrária à ditadura e a preferência do regime pela Varig. A Excelsior, do grupo Simonsen, resistiu à censura e foi sufocada pelo governo militar até ter a falência decretada, em 1970.
Essa também foi a linha de raciocínio adotada pela conselheira Vanda Davi Fernandes de Oliveira, relatora do caso na Comissão de Anistia, ao proferir seu voto favorável à reparação histórica a Celso Rocha Miranda. O colegiado entendeu que o fechamento da Panair foi consequência da perseguição política aos sócios da empresa, em meio a interesses ocultos, tanto nacionais quanto internacionais, que visavam criar um monopólio nas rotas internacionais de voo. Em 2021, no governo Jair Bolsonaro, com outros integrantes, a mesma comissão havia negado o pedido.
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