Dawisson Belém Lopes*
O Brasil já se preparava para desembarcar do regime militar quando, no fim dos anos 1970, o Itamaraty criou a sua assessoria de imprensa. O motivo era inusitado: o presidente Ernesto Geisel, que não costumava falar com a imprensa dentro do país, fazia concessões quando estava em agendas no exterior.
Isso gerava, por consequência, enorme pressão sobre o pessoal do serviço diplomático. Representantes de todos os meios de comunicação, no Brasil, viam-se obrigados a tomar um voo, qualquer que fosse o destino presidencial, para tentar colher alguma declaração do general. Eram os ossos do ofício.
Tal tradição acabou se consolidando com o acúmulo dos mandatos democráticos na Nova República. À medida que compromissos internacionais dos presidentes se converteram em momentos de diálogo e reflexão sobre a vida política brasileira, jornalistas estrangeiros e patrícios faziam-se efetivos porta-vozes da sociedade civil.
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Viagens internacionais, aliás, nem sempre foram percebidas como pertinentes às rotinas do chefe de Estado brasileiro. Houve um tempo em que o incumbente se deslocava menos ao exterior. O incremento desse recurso de representação deveu-se a FHC, presidente que chegou a ser identificado, na opinião pública, pelo jocoso codinome “Viajando Henrique Cardoso”.
Mas foi Lula da Silva, sucessor de Cardoso, quem levou o instituto da diplomacia presidencial – a representação direta do Estado nacional, sem mediação do corpo diplomático – ao último degrau da escala. Tanto no quantitativo quanto na abrangência geográfica, ninguém esteve perto do ex-presidente. Ao longo de seus dois mandatos, entre 2003 e 2011, foram oitenta países visitados, em 139 ocasiões.
Depois de FHC e Lula, todavia, o Brasil retraiu-se. Ou, se preferirem, a curva da diplomacia presidencial normalizou-se. Rousseff, Temer e Bolsonaro nunca exploraram o recurso das viagens com tanto desembaraço e brilhantismo. Por motivos diversos, seus mandatos foram mais introvertidos.
Se Rousseff não era tão hábil com as tarefas diplomáticas quanto o seu antecessor petista, Temer governou sob desconfiança doméstica e internacional. Ambos mantiveram-se menos engajados com pautas de relações exteriores do que se poderia esperar numa conjuntura de particular visibilidade do Brasil no plano global, com Copa do Mundo e Olimpíadas de Verão aqui sediadas.
Bolsonaro, por seu turno, tem sido um caso absolutamente atípico de “diplomata”: não põe o pé fora do país com frequência e, quando o faz, opta por destinos exóticos e não necessariamente condizentes com as tradições bicentenárias da nossa política exterior. Faz, invariavelmente, acenos para líderes políticos que comunguem de seus valores e crenças pessoais, em que pesem as contradições e constrangimentos gerados para o Estado brasileiro.
Vamos rapidamente aos dados: entre 1o de janeiro de 2019 e 22 de setembro de 2022, Jair Bolsonaro fez 23 viagens internacionais (contra 57 de Lula, durante o seu primeiro mandato presidencial). Visitou 22 países distintos, dos quais nenhum estava na África. Sete dessas viagens foram aos Estados Unidos da América – de longe, o seu destino preferencial.
No Reino Unido, Estado com o qual o Brasil mantém intensa relação bilateral desde 1825, Bolsonaro só aterrissou bem recentemente, por força do falecimento da Rainha Elizabeth II. Sua fugaz passagem pela ilha fez-se notar pelo mal-estar causado nos britânicos, com a tentativa de explorar eleitoralmente o funeral real. O dano à imagem do país foi evidente.
Em sua presidência, Bolsonaro não visitou diversos parceiros históricos do Brasil na Europa – como Portugal, Espanha, Alemanha e França. Na América Latina, ignorou México, Colômbia, Peru e Bolívia. Entretanto, esteve por duas vezes em Qatar e Emirados Árabes Unidos e uma na Arábia Saudita desde que tomou posse. É difícil sustentar, da perspectiva geopolítica, uma ênfase tão restritiva.
Há, ainda, o argumento econômico. Quando embarca no avião da FAB, o presidente investe-se em caixeiro-viajante oficial. É o promotor dos negócios do Brasil no estrangeiro, em sentido amplo e republicano. A forma tímida e enviesada como Bolsonaro lidou com as responsabilidades diplomáticas, porém, não ajudou a promover o comércio exterior e os investimentos externos diretos.
O mapeamento dos itinerários presidenciais é ilustrativo do isolamento brasileiro no mundo atual. Fruto de uma estratégia de aproximação eleitoreira com aliados estrangeiros, a diplomacia bolsonarista desconsidera as questões estruturais, de longo prazo, e os interesses difusos da sociedade brasileira. Se não tem potencial de dar voto, a agenda no exterior perde o apelo para Bolsonaro.
Esse é, de resto, outro elemento que conecta Jair Bolsonaro a seu mestre, o ex-presidente americano Donald Trump. Como o ex-assessor de segurança nacional John Bolton chegou a afirmar em livro de memórias, “Trump nunca pensava em segurança nacional na sua atuação internacional; em lugar disso, ele buscava identificar aquilo que deveria ser feito para aumentar as suas chances de reeleição”.
Soa bastante familiar, não?
*Dawisson Belém Lopes é professor de Política Internacional e Comparada da UFMG, é pesquisador visitante do St Antony’s College, Universidade de Oxford (2022-2023).
Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.
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