João José Forni**
As cenas de barbárie a que o Brasil assistiu em 8 de janeiro ficarão na história como dos episódios mais tristes e vergonhosos da crônica política do país. Não há registro, ao que se sabe, tanto no Império quanto na Velha República, de invasão ou depredação às sedes do Executivo, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional na forma como aconteceu neste domingo em Brasília. Nem após 1930, até nossos dias, apesar de todas as crises políticas que marcaram a história do país nesse período, por mais graves que fossem.
A incompetência, leniência e, por que não dizer, conivência das autoridades policiais de Brasília, associadas ao despreparo do Batalhão da Guarda e das forças de segurança que estão incumbidas de proteger o Palácio do Planalto, o STF e o Congresso, facilitaram a ação dos terroristas. Travestidos de patriotas e fantasiados de brasileiros, eles invadiram e depredaram prédios, o patrimônio público e o acervo cultural, com requintes de ódio e métodos selvagens. Só faltou colocarem fogo nos prédios e móveis. E não foi por falta de ameaças e pistas que os órgãos de segurança do DF falharam. O que ocorreu em Brasília em 8 de janeiro não foi um Cisne Negro*, na acepção do filósofo Nassim Taleb: evento raro e de magnitude, com grande impacto na sociedade, porém impossível de ser previsto. Absolutamente, não foi.
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Desde a conclusão das eleições, em 30 de outubro, esses movimentos golpistas começaram com interrupções de estradas e ocupação de espaços públicos, sem que o governo Bolsonaro desse um sinal de que a eleição tinha acabado e havia um vencedor. E que protestar, tumultuando a vida do cidadão, não mudaria o resultado, reconhecido e consagrado pelo TSE. Muito ao contrário. Após um longo silêncio seguido às eleições, nas eventuais citações nas redes sociais, o ex-presidente nunca colaborou, como um estadista e democrata deveria fazer, para dar um basta nesses protestos. Esses grupos já vinham dando sinais de que algo violento poderia acontecer, porque acolheram e continuam disseminando a falsa tese de que as eleições teriam sido fraudadas.
Essa crise, que teve o vil e covarde desenlace nos ataques à democracia brasileira no dia 8, vinha sendo gestada mesmo antes das eleições. Grupos radicais diziam não aceitar a eleição e posse de Lula da Silva. A partir daí, as forças de segurança de vários estados e do DF foram complacentes com esses grupos, abrigados e protegidos sob a chancela de sítios militares, de polícias estaduais e até de alguns governadores e prefeitos. Por isso, a preferência por acampamentos próximos a quartéis, em várias cidades, como se ali se sentissem protegidos e imunes a uma intervenção. O que de fato acabou ocorrendo.
A cabeça da serpente
O sinal mais claro em Brasília de que eles estavam dispostos a tudo, sem medo, foi dado na noite de 12 de dezembro, quando da diplomação de Lula e Alckmin. Após a prisão de um terrorista, travestido de índio, um grupo de militantes da direita, que estava acampado próximo ao QG do Exército, se dirigiu ao setor central da cidade e tentou invadir a sede da Polícia Federal, para libertar o acusado. Repelidos, atacaram uma delegacia e começaram a depredar veículos, placas de sinalização, prédios públicos, tudo que estivesse no trajeto deles. Cinco ônibus e mais de 10 carros foram queimados ou depredados. E a polícia do DF, o que fez? Nada, absolutamente nada. Assistiu.
Ali começou a ser gestada a cabeça da serpente em que se transformou esse movimento golpista. A reação do governo do DF a esse primeiro confronto foi pífia, tímida, apenas retórica, sem ação. Ninguém foi preso, apesar das cobranças. Eles, portanto, se sentiram impunes e livres para ensaiar outros ataques à democracia, abrigados sempre numa área afastada do centro de Brasília, na frente ao QG do Exército. Prática muito semelhante a utilizada em outros estados.
As crises dão sinais
O que ocorreu em Brasília no dia 8, portanto, não foi um Cisne Negro. Porque era uma crise latente, prevista, que sempre esteve no radar do Ministério da Justiça, da PF, da PM e de outros órgãos de segurança do DF. O ataque aos prédios dos Três Poderes não ocorreu por acaso. Foi orquestrado, sinalizado e muito bem preparado, principalmente pelas redes sociais. Se as redes mais tradicionais tiveram o cuidado de retirar conteúdos golpistas, provocadas ou não pelo STF, isso não aconteceu, por exemplo, com o Telegram, rede fundada por dois russos e atualmente com sede em Dubai, nos Emirados Árabes. Essa rede social não se submete ao regramento imposto a outras e não tem escritório no Brasil, até mesmo para ser citada judicialmente. Nesse ninho, os grupos radicais brasileiros fazem a festa, combinando e se articulando para atacar as instituições, desde antes das eleições. Num método muito parecido com os radicais americanos que articularam os ataques ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.
Diante disso, faltou trabalho de inteligência dos órgãos de segurança. Sobrou corpo mole e conivência da PM do DF, principalmente. Para isso, o GDF tem orçamento federal específico. PMs foram flagrados em vídeos facilitando a entrada no prédio do Congresso Nacional. Outros, enquanto um grupo de terroristas invadia o Palácio do Planalto, filmavam e faziam selfies dos colegas, como meros espectadores. O próprio Ministério da Justiça, já sob comando do ministro Flávio Dino, foi questionado e teve que fazer um malabarismo político para explicar por que foi surpreendido e não previu a possibilidade dessa invasão. Ou pelo menos, se chegou a prever, não foi capaz de evitá-la. Flávio Dino acreditou em Ibaneis, este teria confiado no secretário de segurança interino e todos falharam, em cadeia.
O ministro da Defesa, José Múcio, falhou ao não avaliar o risco que os acampamentos em quartéis representavam para as instituições do país. A partir do dia 1º de janeiro, essas incubadoras de terroristas deveriam ter sido desativadas, para o país voltar à normalidade. Como havia militares ou parentes de militares nesses acampamentos, o próprio Exército fez corpo mole e o ministro da Defesa acreditou na boa vontade, que nunca houve, alegando que os acampados eram inofensivos.
Se o GDF tinha previsto alguma coisa, errou na forma de contenção. Deixou dezenas de ônibus com golpistas entrarem no DF e permitiu que o acampamento próximo ao QG se transformasse na célula do ataque. A PM escoltou uma massa de golpistas em direção à Esplanada. Foi flagrante a falha de segurança nas grades que separavam os prédios públicos do resto da pista do Eixo Monumental, nas proximidades do Congresso Nacional. Quando a horda de terroristas avançou, os poucos policiais presentes ainda tentaram contê-los. Mas como os baderneiros eram muitos, policiais e seguranças foram recuando e deixando o grupo avançar, até chegar perto do prédio do Congresso Nacional, o primeiro a ser invadido.
O escritor búlgaro Elias Canetti, na monumental obra “Massa e Poder”, diz que “em uma multidão, reconfortamo-nos uns aos outros e nos iludimos de que somos de alguma maneira superiores a quem está de fora; dando-nos a impressão de que temos o poder de banalizar o conhecimento e de agredir dissidentes.” Mesmo os covardes se tornam perigosos no meio da turba, porque embarcam no delírio coletivo e fazem coisas que em situações normais não fariam. “Tornamo-nos como se fôssemos um só corpo com a turba, perdemos a consciência das nossas limitações”, diz Canetti.
Consequências duras
Não restou outra decisão ao presidente Lula se não decretar a intervenção na segurança do DF, pelas falhas e omissões evidentes, sobre as quais nenhuma explicação do governador do DF conseguiria absolvê-lo. Há uma máxima de gestão de crises que recomenda: espere pelo melhor; mas prepare-se para o pior. A gestão da segurança assumida por um interventor de confiança do Ministro da Justiça decorreu de todo um contexto de erros, falhas grosseiras e ausência de liderança, num momento crucial de violência contra o coração do poder, em Brasília.
Em sequência, a pá de cal nessa gestão de crise Tabajara veio do ministro Alexandre de Moraes, do STF: afastou o governador do Distrito Federal, medida extremamente rara e grave, que ocorreu poucas vezes na história do país. É mais ou menos quando o poder central percebe a incapacidade do governante de fazer o que deve ser feito, perdendo o controle da ordem pública. Com essa canetada, associada à determinação de acabar com os acampamentos de militantes; identificar os golpistas e apreender os ônibus dos terroristas, em todo o País, o ministro do STF fez mais pela preservação do estado de direito e pela solução da crise do que Ibaneis, Múcio e Dino juntos. Foi como um tiro no galinheiro.
Outro desdobramento desse ataque são as milhares de prisões, seguidas dos indiciamentos dos participantes da barbárie. Eles estão sendo identificados, vão responder a processos que irão tipificar vários crimes, como dano ao patrimônio público; crimes contra o patrimônio cultural; associação criminosa; golpe de estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Na noite de 9 de janeiro, já eram 1.200 presos, que estavam depondo, sendo identificados e recolhidos ao xadrez.
E mais: se alguém, que participou dos ataques e conseguiu se evadir na calada da noite, não significa que escapou. A Polícia Civil e Militar do DF, o Ministério da Justiça, pela Polícia Federal, respaldados pelo STF, serão implacáveis. Moraes determinou às operadoras de celular armazenarem os dados de geolocalização das pessoas que estiveram nos três prédios no dia 8 de janeiro, na hora da invasão. Se alguém participou dos atos antidemocráticos, mas está tranquilo porque usava máscara, não se exibiu nas redes sociais e conseguiu sair de Brasília antes dos outros, não importa o meio de transporte. Mesmo assim, os mecanismos de geolocalização irão ajudar na identificação. É desnecessário registrar que quem aderiu a essa aventura, certamente sabia ou deveria saber dos riscos que significava.
Os erros cometidos pelos órgãos de segurança, nessa crise, representaram não apenas um risco, mas uma perigosa ameaça à democracia brasileira, além de um grande prejuízo aos cofres públicos, associado ao irreparável atentado à cultura e às artes. A democracia resistiu, mas o levante mostrou que, com fascistas, golpistas e fanáticos, fantasiados de patriotas, gente do bem e devotos, não se pode brincar.
*O que é a teoria do Cisne Negro?
O Cisne Negro é um conceito criado para representar eventos que podem ser considerados inesperados ou, em outras palavras, um ponto fora da curva (outliers). Outra característica do conceito é que, embora lide com eventos pouco corriqueiros, estes são considerados de grande impacto, gerando efeitos longos no decorrer da história. A exemplo do 11 de setembro de 2001.
O termo se popularizou a partir do livro “The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable” (“O Cisne Negro: o impacto do altamente improvável”, em tradução livre). Livro escrito pelo filósofo e professor de finanças Nassim Taleb, professor nos EUA, e publicado em 2007.
**João José Forni é jornalista, Mestre em Comunicação pela UnB, Consultor de Comunicação com foco em Gestão de Crises. Autor do livro “Gestão de Crises e Comunicação –O que Gestores e Profissionais de Comunicação precisam saber para Enfrentar Crises Corporativas”.