por Paloma Gomes, Rafael Modesto e Nicolas Nascimento*
“O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos”
(Depoimento de um “bugreiro” sobre a violência contra o povo Xokleng, 1972)
Na véspera de um julgamento histórico a ser realizado no Supremo Tribunal Federal (STF), o Recurso Extraordinário em Repercussão Geral – RE-RG 1017365 (Tema 1031), previsto para ser retomado neste dia 7 de junho, pouco se diz sobre as atrocidades praticadas contra os povos indígenas durante a história da apropriação das suas terras – que, apesar de longa, é permeada de eventos trágicos recentes e se desdobra ainda nos dias de hoje.
Talvez seja uma “verdade inconveniente” para os que defendem o chamado Marco Temporal das Terras Indígenas tratar desse capítulo triste da nossa história assim, em plena Suprema Corte, uma vez que seria revelado um lado obscuro, desumano, atroz contra os verdadeiros povos originários brasileiros.
O Relatório Figueiredo, produto da CPI do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), instaurada em 1967, demonstra que a violência que vitimou os povos indígenas no Brasil foi parte de um projeto político nacional sistêmico, com maior impacto no período de 1964 a 1968, em plena ditadura civil/militar no Brasil.
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A prática de espoliação do patrimônio fundiário indígena, no decorrer do século passado, se deu com a ajuda direta do SPI, em especial quando o órgão era vinculado ao Ministério da Agricultura. Os resultados: devastadores!
Os crimes mais comuns revelados foram o esbulho possessório, a apropriação da renda e o trabalho escravo indígena. Em caso de “rebeldia”, ocorria a prática de crimes físicos contra os indígenas, como estupros, cárcere privado e castigos como o esmagamento do tornozelo pelo “tronco”, amputações, crucificações e mortes.
No caso do povo Xokleng, que é parte no processo cujo desfecho fixará a tese no Tema 1031 no Supremo, não foi diferente. Há registros de que um acordo envolvendo o SPI teria sido celebrado em 20 de setembro de 1914, quando ficaram reservados cerca de 37 mil hectares de terras aos Xokleng. Contudo, esse acordo deixou de ser respeitado, e parte significativa das terras foi desmembrada compulsoriamente. Assim, em 1926, de 37 mil hectares, a área passou a medir apenas 20 mil. Essa redução foi associada a um conjunto de atos de extrema violência, segundo o que nos relata o povo Xokleng.
Nas décadas seguintes, o território sofreu uma outra redução compulsória, sobrando aos Xokleng somente 14 mil hectares, conforme consta em laudo pericial antropológico:
Em 1952 este mesmo tipo de pressão gerou a desanexação de 6 mil hectares da Terra Indígena – as áreas da Barra da Prata, Rio Bruno e Rio Denecke –, considerando a existência, então, de madeireiros e agricultores “intrusa” naquela região. Isso ocorreu através de acordo firmado entre o governo federal, através da 7ª Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios – SPI e o governo estadual de Santa Catarina, através da Diretoria de Terras e Colonização de Santa Catarina – DTC/SC, que alterou os limites descritos no Decreto de 15 de 1926, reduzindo a extensão da Terra Indígena para 14.048,88 hectares.
Não bastasse isso, em 1970, os Xokleng foram atingidos com a construção da Barragem Norte, que vem gerando impactos cada vez mais negativos na vida do povo e no território tradicional.
O estudioso do povo Xokleng Silvio Coelho dos Santos descreveu o período dos sucessivos esbulhos da seguinte forma: “(…) vivendo nas encostas do planalto e nos vales litorâneos, viram suas terras serem gradativamente ocupadas pelos brancos. Nesse processo, sofreram as consequências de decisões políticas e econômicas, em regra executadas a fio de facão e a tiros de escopeta por experimentados caçadores de índios, os bugreiros”. Acrescenta o estudioso:
Os Xokleng despertaram o interesse dos imigrantes, desde o primeiro momento. Vistos como motivo de insegurança pelos colonos e obstáculo ao “progresso”, pelas empresas de colonização, centraram um debate que levou o governo a criar o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. Alvos das atenções do novo Serviço, vivenciaram nos primeiros anos de convívio na reserva de Ibirama a perda de dois terços da população originalmente contatada (SANTOS, 1997, pg. 09).
Conclui o mesmo autor, com o depoimento colhido a um “bugreiro”, no ano de 1972, o que demonstra a radicalidade contra o povo Xokleng:
Segundo um depoimento que obtive do bugreiro Ireno Pinheiro, em 1972, na localidade de Santa Rosa de Lima, afugentavam-se os índios “… pela boca da arma. O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Senão, algum sobrevivente fazia vingança. Quando foram acabando, o governo deixou de pagar a gente. A tropa já não tinha como manter as despesas. As companhias de colonização e os colonos pagavam menos. As tropas foram terminando. Ficaram só uns poucos homens, que iam em dois ou três pro mato, caçando e matando esses índios extraviados. Getúlio Vargas já era governo, quando eu fiz uma batida. Usei Winchester. Os índios tavam acampados num grotão. Gastei 24 tiros. Meu companheiro, não sei. Eu atirava bem (grifos nossos).
Isso demonstra que houve violenta expulsão das comunidades indígenas e a entrega das suas terras para os colonizadores, com a ação direta do estado de Santa Catarina e do SPI.
Como se vê, o território dos Xokleng, demarcado em 1914 – em tamanho menor ao que historicamente ocupavam – foi sendo esbulhado e entregue a particulares. Mais recentemente, já no início do século XXI, foi iniciado o procedimento demarcatório em acordo com a atual Constituição.
Assim, após a realização de complexo procedimento administrativo e com base em laudo antropológico, o Ministério da Justiça, por meio da Portaria nº 1182/2003, declarou de posse permanente dos grupos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani a Terra indígena Ibirama-La Klãnõ, com superfície aproximada de 37.108 hectares.
É justamente a questão do deslocamento compulsório sob o jugo da violência que será apreciada pelo STF neste dia 7 de junho, por ocasião do julgamento da ACO 1100 e do RE-RG 1017365 (Tema 1031). Ambos os casos, no mérito, tratam do território do povo Xokleng, o segundo deles com repercussão geral.
A Corte, portanto, terá a chance de pacificar a interpretação do estatuto constitucional indígena e viabilizar concreta aplicação da vontade do constituinte de 1988, não só para os Xokleng, mas a todos os povos do nosso país. Terá a oportunidade de impedir que os crimes de caçadas humanas, como aqui narrados, sejam anistiados ou mesmo validados. E, ainda, terá o ensejo de superar a ignorância, o preconceito e o racismo que desumaniza os povos originários e sua cultura e que destrói o meio ambiente com projetos “insustentavelmente” ultrapassados.
* Paloma Gomes é advogada do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Rafael Modesto e Nicolas Nascimento também são advogados que atuam na assessoria jurídica do CIMI.
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