Mergulhadores experientes garantem: as paisagens mais lindas são as que se encontram em grandes profundidades. Mas, para chegar até elas, há que lutar contra a dor causada pela pressão nos ouvidos, a ansiedade e o receio do desconhecido. Mas quem se aventura às profundezas recebe em retribuição as visões mais espetaculares que um ser humano é capaz de vislumbrar.
O recado dos mergulhadores vale para a vida em todos os seus aspectos. Principalmente na área cultural. Quem, nesses dias plenos das tentações do entretenimento rasteiro das redes sociais consegue deixar o celular de lado e mergulhar num romance clássico da literatura sai de lá diferente, sai de lá – maior.
Igualmente, quem consegue escapar do lixo musical despejado às toneladas pela maioria das emissoras de rádios e se dispõe a ouvir alguns clássicos da música popular brasileira e universal adquire o estranho poder de visitar as belezas de mares nunca dantes navegados. Quem se deixa levar pelos versos dos poetas daqui e d’alhures emerge desse mergulho mais sensível, mais equilibrado – mais próximo do caminho da sabedoria (que nada tem a vez com pedantismo ou erudição: mas sim como sinônimo de autoconhecimento, compreensão, acolhimento e respeito pelo semelhante).
Leia também
A imaginação é filha da cultura
Isso sem falar na experiência sensorial que não tem preço de assistir a um espetáculo de balé, a uma peça de teatro, a um concerto sinfônico, ou a um filme de um diretor desses que mudaram a forma de se ver e se entender o mundo. Da mesma forma com o que acontece numa ida a um museu, a uma galeria, a uma cidade dessas tombadas como patrimônio histórico, ou mesmo a um bom restaurante onde se pode apreciar o melhor da “arte” culinária. Sim, a cozinha quando exercida com rigor e criatividade faz jus ao título de “arte”.
Qualquer experiência derivada do contato com produtos artísticos, sejam eles clássicos, atuais, futuristas, experimentais ou de simples provocação estética traz como recompensa um crescimento disso que se pode englobar numa palavra: imaginação. Só ela permite ao ser humano ampliar os horizontes interiores, expandir-se, abrir-se para novas e instigantes experiências, viver a vida em plenitude. Algo inimaginável para quem opta por atravessar a vida na condição de biodigestor, apenas comendo, bebendo e produzindo esterco. Ou, como diria Fernando Pessoa: “Cadáver adiado que procria”.
A imaginação como fiadora da liberdade
A imaginação, que cada um a seu critério pode reduzir ao tamanho de um grão de feijão ou expandir até os infinitos do universo é, ao fim e ao cabo, a única e mais fiel fiadora da liberdade humana. Uma pessoa de horizontes intelectuais estreitos – como algumas que se orgulham de nunca ter lido um livro ou entrado num teatro – se um dia for presa lhe parecerá que a cela é infinitamente mais estreita do que a da outra que ampliou a própria imaginação pela cultura. Pois a imaginação é que define os limites da liberdade, e não a barreira física do quadrilátero da cela de uma cadeia.
A expansão da imaginação nada tem a ver com origem ou poder aquisitivo. Você deve conhecer pessoas muito humildes, mas de vida interior intensa e rica. Como deve conhecer pessoas ricas, mas de vida interior paupérrima e de poucas luzes. Daí a afirmação anterior, segundo a qual a imaginação é a fiadora da liberdade. Liberdade que resulta, diretamente, da ampliação dos limites da imaginação que, por sua vez, deriva diretamente do acesso aos bens culturais.
Conheço índios de tribos escondidas no coração da Amazônia que nunca puseram os pés num teatro, nunca abriram um livro e nunca ouviram “Garota de Ipanema”, mas desfrutam de um universo imaginário tão extenso, povoado de lendas e conhecimentos ancestrais, de danças, de cantos, de arte plumária, e da devoção a deuses muito próximos a eles do que os de muitas religiões monoteístas.
O discurso raso e demagógico
Esse preâmbulo gigante serve apenas para justificar uma assertiva. A de que a guinada à direita radical que o país acaba de dar é consequência direta da indigência intelectual que, por sua vez, deriva do pouco caso com que vem sendo (mal) tratadas tanto a cultura como a educação.
Para muita gente que se diz “avançada”, falar em perda de valores ou degradação moral é sinal de caretice, de submissão ao retrocesso e de preconceito com a evolução social. Pois afirmo que se trata e-xa-ta-men-te do contrário. Um povo achatado culturalmente, como tem acontecido aqui em Pindorama, é presa fácil do discurso raso e demagógico – tanto dos líderes políticos fajutos como do proselitismo tacanho dos líderes religiosos de araque que tomaram a mídia eletrônica de assalto.
A revolução política – sim, usemos a expressão correta, que nada tem a ver com a tomada do poder pela força – só se concretizará depois de purgadas as náuseas e pensadas as feridas deixadas pela última eleição. E isso vai levar tempo. Ah, vai.
O sol vai demorar muito a nascer. A camada de nuvens de chumbo é espessa e a crosta de gelo da indiferença é grossa demais.
Então, se não há saída pra fora, é hora de abrir saídas – pra dentro. Ampliemos a imaginação. E conquistemos a liberdade possível.
Do mesmo autor: