Isabella Henriques e Maria Mello*
É fato que as novas tecnologias digitais vêm mudando a vida das crianças e suas possibilidades futuras. A Internet pode conectá-las a um universo de oportunidades se elas tiverem acesso e condições de aproveitar ao máximo o ambiente digital. Por outro lado, pesquisas em todo o mundo mostram que, se as crianças não tiverem a chance de se beneficiar das novas tecnologias digitais em seu melhor interesse, a pobreza, as desigualdades, o deslocamento geográfico, o isolamento e a discriminação com base em gênero, raça e classe podem ser intensificadas. Ou seja, crianças em situação de maior vulnerabilidade podem se tornar ainda mais suscetíveis a diversas formas de exploração, bem como a ameaças ao seu bem-estar.
Veja mais
Câmara adia votação do PL das Fake News
Conheça a íntegra do parecer do PL das Fake News
No Brasil, as crianças – aqui consideradas conforme a definição da ONU, de 0 a 18 anos – representam quase 1/3 da população do país. Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2021, 93% das crianças de 9 a 17 anos têm acesso à Internet, sendo que quase a totalidade acessa a Internet pelo celular. Esse estudo indica, ainda, que o nível de escolaridade de mães, pais e responsáveis está relacionado com as suas atividades de orientação e mediação com os seus filhos e filhas no ambiente digital.
Leia também
Desigualdades socioeconômicas, especialmente no Sul Global, têm sido apontadas como fatores preponderantes na existência de maiores riscos e menores oportunidades para as crianças. Isso porque essas crianças enfrentam mais barreiras no acesso à Internet de qualidade e têm menos recursos disponíveis para a mediação e o suporte adequados quanto à fruição das tecnologias digitais. Além disso, melhores habilidades digitais em crianças estão associadas a mais oportunidades, embora também a mais riscos no ambiente digital.
Segundo a mesma pesquisa, há crianças que viram alguém ser discriminado na Internet; encontraram conteúdo sensível relacionado à automutilação e perda extrema de peso; métodos de autoagressão que promovem a autolesão; métodos de autoagressão que promovem o suicídio; e métodos de autoagressão que envolvem o uso de drogas ou glorificam experiências com drogas. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Children Online Research and Evidence (CO:RE) incluem em suas classificações de riscos no ambiente digital para crianças aqueles relacionados ao contato, comportamento, conteúdo e exploração comercial. Além dos riscos transversais à privacidade, saúde física e mental, e os relacionados à discriminação e desigualdades.
Os recentes e inomináveis ataques às escolas no Brasil tornaram ainda mais patente a necessidade de exigirmos que instituições e empresas formulem suas ofertas digitais para atender aos melhores interesses das crianças, em particular no Sul Global, onde as desigualdades acentuam os riscos envolvidos. É passada a hora de instituições e empresas que não atendam ao melhor interesse de crianças serem responsabilizadas!
Daí a importância de haver uma efetiva regulação das plataformas conforme padrões legais, no sentido que não se dependa apenas da autorregulação, e que deve estender-se não só à moderação de conteúdos, mas, principalmente, à arquitetura das plataformas – até porque os riscos a que crianças estão expostas estão relacionados, em grande medida, ao seu design e à própria concepção dos seus modelos de negócio.
Tal mecanismo deve priorizar o melhor interesse desses indivíduos hipervulneráveis, conforme previsto na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e no Comentário Geral n. 25 sobre os Direitos da Criança no Ambiente Digital, documento de referência que deve ser observado por Estados e empresas, porque detalha a questão no âmbito da Convenção dos Direitos da Criança da ONU, a Convenção mais adotada em todo o mundo.
Em direção convergente a esse entendimento está o texto do deputado Orlando Silva sobre o PL 2630, sob intenso debate na Câmara dos Deputados nos últimos dias. O relatório prevê, em capítulo específico sobre proteção a esse público, o melhor interesse da criança como parâmetro dos serviços das plataformas, a adoção de medidas para assegurar sua privacidade, proteção de dados e segurança – vedando, por exemplo, a criação de perfis comportamentais de usuários crianças a partir da coleta e do tratamento de seus dados pessoais para fins de direcionamento publicitário.
A adoção e o aprimoramento dos sistemas de verificação da idade, respeitando a privacidade dos usuários, e o desenvolvimento e promoção de ferramentas de controle parental e para notificação de abusos ou busca de apoio por parte de crianças também são pontos extremamente positivos da proposta, que em linhas gerais apresenta importantes avanços em termos de transparência, prevenção de abusos e garantia de liberdades.
Ainda que demande ajustes pontuais e necessite de sinalização quanto à constituição de uma autoridade que inspecione o cumprimento da lei – autoridade esta que precisa ser independente e multissetorial -, o projeto é de suma importância para a proteção de direitos das crianças no ambiente online.
O debate sobre regulação de plataformas deve se dar no sentido da proteção integral das crianças na Internet (e não dela!), permitindo que se beneficiem plenamente das oportunidades oferecidas pelo ambiente digital desde que livres de qualquer exploração, inclusive a comercial. Porque nunca é demais lembrar: o artigo 227 da Constituição Federal já determina que todos nós somos responsáveis pelo cuidado e proteção das crianças, inclusive o Estado e as empresas.
Isabella Henriques é diretora-executiva do Instituto Alana e Maria Mello é coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana.*