Cyntia Carvalho e Silva *
Em tempos de severos testes à democracia, desde questionamentos ao sistema eleitoral a tentativas de golpes de Estado, a Lei 14.532/23, que altera a Lei do Racismo, representa uma pequena luz nesse túnel tão sombrio que a sociedade brasileira vem percorrendo. A publicação dessa lei não poderia ter melhor ocasião: a histórica cerimônia de posse das ministras Anielle Franco e Sônia Guajajara, mulheres negra e indígena, que assumiram as pastas da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas, respectivamente, inéditas na história brasileira, em um Palácio do Planalto já limpo por mãos de mulheres negras depois da barbárie dos atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023.
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A nova lei é um aprimoramento de sistema repressivo contra um dos maiores obstáculos à consolidação da democracia de fato no Brasil: a discriminação, principalmente em razão da cor da pele. Essa ferida decorrente da nossa história escravocrata ainda não cicatrizou e está exposta na representação da pobreza no Brasil, que, segundo o IBGE, tem o rosto de uma mulher negra. Além disso, como bem ensinou o nosso ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, em seu didático livro Racismo Estrutural, o racismo é uma estrutura, um sistema como um programa de computador que está instalado nas mentes de todos os brasileiros e opera a discriminação de forma consciente e inconsciente. Para reprogramar nossas mentes, muitas ações são necessárias, desde prevenção, com campanhas educativas de sensibilização, até a repressão.
E as alterações da Lei 7.716/89, com já 34 anos de existência, vêm trazer mais elementos para que essa repressão seja efetiva, ou seja, que dê cadeia de fato.
Assim, destaco as seguintes inovações:
Avanço para um conceito legal de discriminação
PublicidadeAté então, não havia qualquer parâmetro para definir discriminação na legislação. A nova redação do art. 20-C trouxe parâmetros para auxiliar na identificação dos crimes de discriminação. Assim, discriminatória é “qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.
Pela definição legal, joga-se uma pá de cal na ideia de que haja o racismo reverso ou invertido, ou seja, em que se aplicaria o crime de racismo se uma pessoa fosse discriminada por ser branca, caucasiana e sulista, por exemplo.
Aliás, trago aqui uma correção na nova lei ao se referir a “grupos minoritários”, quando na verdade não são minorias, já que a população negra no Brasil, que soma os pretos e os pardos, constitui a maioria. Na verdade, grupos como nordestinos, negros, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, pessoas idosas, indígenas são minorizados por razões históricas e sociais, e não minoritários.
Criação do tipo penal da injúria racial
Antes, a Lei 7.716/89 só previa crimes de racismo e equiparados. Agora, houve a criação da injúria racial em uma lei especial, isto é, fora do Código Penal, consistente na conduta de ofender alguém em razão da raça, cor, etnia ou procedência nacional.
A pena foi aumentada para dois a cinco anos de reclusão e multa, não cabendo fiança nem prescrição da pena, pela interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF), em 28 de janeiro de 2021, no HC 154.248/DF, a que atribuiu efeitos transcendentes, equiparando o crime de injúria racial ao racismo.
Inafiançável quer dizer que, quando a pessoa é presa em flagrante, nem o delegado de polícia e nem o juiz podem conceder fiança em dinheiro para que o acusado responda ao processo em liberdade. Contudo, na prática, pelo princípio da presunção de inocência, a prisão antes da condenação definitiva é exceção e deve ser regida pelos princípios da necessidade e excepcionalidade. Assim, dificilmente, os juízes converterão a prisão em flagrante em preventiva para os acusados de racismo ou injúria racial. Nesses casos, será concedida a liberdade SEM QUALQUER FIANÇA… ou seja, grátis. Na prática, ser um crime inafiançável é um benefício para o investigado e não uma punição, já que ele poderá recuperar a liberdade sem sequer ter que sofrer no bolso, ainda que tenha condições financeiras para tanto.
Imprescritível quer dizer que não há limite de tempo para denunciar o crime, de forma que é possível buscar o sistema de Justiça para relatar discriminações de passados remotos.
Inovou-se, também, ao aumentar a pena da injúria racial de metade quando o crime é cometido por duas ou mais pessoas, como em situações de bullying, assédio no ambiente de trabalho ou mesmo em redes sociais.
A tradicional injúria qualificada do art. 140, §3º, do Código Penal, cuja pena é de reclusão de um a três anos, permanece apenas para a discriminação referente à religião, às pessoas com deficiência e às pessoas idosas.
Criação de mais um tipo de racismo comum
No Brasil, há racismo em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, identidade de gênero e orientação sexual (homotransfobia), como decidiu o STF na ADO 26/STF, em junho de 2019.
O racismo comum está no caput do art. 20 e prevê pena de um a três anos de reclusão, também inafiançável e imprescritível, que se aplica para qualquer conduta de quem pratica, induz ou incita a discriminação contra pessoa ou grupos minorizados.
A diferença entre injúria racial reside na intenção do agressor. No primeiro caso, o objetivo da discriminação é uma ofensa individual e, no segundo, já se refere ao desprezo ao grupo que possui aquela característica.
A lei inovou ao criar o racismo religioso, com pena de um a três anos de reclusão e multa, a “quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”. Tal crime é uma resposta às recentes invasões de templos religiosos, principalmente de matriz africana.
Quem ofender alguém por motivos religiosos, individualmente, continua submetido às penas da injúria qualificada do art. 140, §3º, do Código Penal.
Criação de mais dois tipos de racismo qualificado
Se o racismo comum já é asqueroso, o qualificado ainda é mais reprovável e têm penas maiores em razão de circunstância que provoca maiores danos à vítima e à coletividade.
A redação anterior já trazia um tipo de racismo qualificado, que está ligado à divulgação de ideias nazistas. Comparado ao racismo comum, sua pena é maior, de dois a cinco anos de reclusão e multa.
Introduziram-se dois tipos de racismo com penas mais severas: o racismo qualificado pelo meio de comunicação, praticado em publicação, impressa ou virtual, inclusive nas redes sociais; e o racismo qualificado pela prática em eventos públicos, como atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais. Em ambos os casos, a pena é de reclusão de dois a cinco anos e multa, e a maior punição decorre do maior alcance dos atos criminoso. Então, pense duas vezes antes de cantar músicas racistas ou homotransfóbicas em uma partida de futebol ou de falar, nas redes sociais, que evangélico ou candomblecista é isso ou aquilo outro.
Discriminação é crime. Quem pratica crime é bandido.
Circunstâncias que aumentam ainda mais a pena
Tanto para os crimes de racismo comum, racismo qualificado e injúria racial, a nova Lei previu aumento de pena para duas circunstâncias: o chamado racismo recreativo, quando a conduta discriminatória ocorrer com intuito de descontração, diversão ou recreação, e o racismo praticado por funcionário público, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las.
Racismo recreativo é a camuflagem da discriminação no humor ou na descontração, tentando eximir a responsabilidade do agressor na justificação de “brincadeirinha”. Agora, “piada de mau gosto” é crime de ódio. Eduque-se.
No segundo caso, é inadmissível que um representante do Estado seja o difusor de discriminação. Daí, a razão de pena mais grave na esfera penal, além da responsabilidade civil e administrativa.
Implicações para a homotransfobia
Pela ADO 26/DF, o STF entendeu que, em casos de discriminação por identidade de gênero e orientação sexual aplica-se a Lei 7.716/89. A corte constitucional incluiu ao lado de “cor, raça, etnia e procedência nacional” as características “identidade de gênero e orientação sexual” em todos os tipos penais comuns ou qualificados e causas de aumento de pena da Lei do Racismo.
Com a transferência do tipo da injúria racial do Código Penal para a Lei 7.716/89, tem-se o fim da discussão se se aplicava a injúria qualificada, do art. 140, §3º, do CP, aos crimes de homotransfobia. Agora ofender uma pessoa em razão da identidade de gênero ou da orientação sexual tem pena de dois a cinco anos de reclusão e multa, além das causas de aumento e ou qualificadoras, a depender das circunstâncias.
E aí, o que eu tenho a ver com isso?
Uma lei apenas no papel não produz qualquer mudança, não tem qualquer efeito. Para ganhar vida, ela precisa de todos nós. Das autoridades públicas, demanda educação continuada, atualização e também coragem para aplicá-la. Da sociedade em geral, demanda denúncias. Quanto maior o número de denúncias, maior o número de ocorrências, inquéritos policiais, condenações e reflexões coletivas sobre os fatos.
Para superarmos o racismo, esse grande obstáculo à consolidação da verdadeira democracia no Brasil, TODOS NÓS, os mais de 200 milhões de brasileiros, teremos de ligar nossas lanterninhas e iluminar, juntos, esse túnel escuro que estamos percorrendo desde a escravidão.
Afinal, você, eu, todos nós, somos a Máquina Pública.
* Cyntia Carvalho e Silva, ativista em direitos humanos, doutoranda em sociologia pela UnB. Delegada da Polícia Civil do Distrito Federal, atua como Delegada-Chefe Adjunta na Decrin, especializada em crimes contra populações minorizadas. Fundadora do canal no Youtube “A Máquina Pública”, @amaquinapublica.
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