Cristina Saraiva*
Em 10 de fevereiro de 1993, era editado o Decreto 750, que dispunha “sobre o corte, a exploração e a supressão da vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica” . Avançado para época, o 750/93 foi o precursor da Lei 11.428/2006, que em 22 de dezembro, como um presente de Natal para os brasileiros, entregava a regularização” sobre a utilização e a proteção da vegetação nativa do bioma Mata Atlântica”
A chamada “ Lei da Mata Atlântica” vinha para buscar consolidar a interrupção do processo de destruição do bioma, um dos mais biodiversos do planeta, que já naquela altura, após décadas e décadas – para não dizer séculos – de destruição sistemática contava apenas com cerca de 15% de sua área original. Fácil concluir que, muito bem vindos, decreto, e posteriormente, a lei, entretanto, foram editados muito tardiamente.
Pela lei atualmente em vigor, a extração de madeira nativa só deve ser autorizada em condições excepcionais, de inequívoco interesse público sendo vedada sua extração para fins de comercialização. ( Lei 11.428/2006)
O mesmo processo que devastou a Mata Atlântica desde a chegada dos portugueses – desmatamento para conversão em áreas agrícolas monocultoras e destruição sistemática e avassaladora da floresta para exploração do comércio de madeiras nobres – agora se repete na Amazônia.
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Na realidade, de uns anos para cá – e segundo diversas pesquisas e análises – , a exploração da madeira passou a ser o principal vetor de destruição da Amazônia, substituindo o desmatamento para implantação de grandes projetos agrícolas e pecuários.
Poderíamos aqui aliás fazer uma pequena inflexão e pontuar que “desmatamento”, conceitualmente, se refere tão somente ao “processo de conversão da floresta para outros usos da terra, como pastagens, áreas de cultivos agrícolas, mineração, ou mesmo, para fins de urbanização” ( imazon.org.br) , não incluindo nessa categoria o corte de madeira para comercialização – associado, por sua vez, ao conceito de “degradação florestal”.
Isso nos leva a pensar, naturalmente, que se os índices de “desmatamento” divulgados não incluem os índices de “degradação florestal”, temos que a situação da Floresta Amazônica é ainda muito mais dramática.
Para muitos estudiosos, o comércio da madeira de árvores centenárias responde atualmente por cerca de 90% da devastação da Amazônia – ainda que não necessariamente sob o conceito de “desmatamento” – e para piorar, se desenvolve em um ambiente de total ilegalidade. Crimes que começam na grilagem de terras, passam por inventários florestais fictícios, falsos projetos de planos de manejo, obtenção de documentação de legalização com base em projetos fraudados, utilização de trabalho análogo à escravidão , invasão de territórios indígenas e muito mais . Tudo isso, naturalmente, com a conivência de funcionários de diversos escalões no executivo, legislativo e judiciário. Corrupção, ineficiência e descaso se misturam levando a um sistema sem controle, e que cada vez mais, começa a se tornar, inclusive, território livre para a atuação do crime organizado.
Diante desse quadro de rápida degradação ambiental e violação de direitos humanos, é Inevitável se perguntar se esperaremos que a Amazônia, a exemplo do que ocorreu com a Mata Atlântica, perca 85% de seu bioma para tomarmos uma providência mais objetiva.
É suficientemente demonstrado atualmente o papel que a Floresta Amazônica desempenha para todo o equilíbrio climático – e não apenas no Brasil, onde as crises hídricas vêm se sucedendo, mas em todo o planeta. Se levarmos em conta os sucessivos eventos extremos que o mundo tem presenciado como grandes inundações, secas históricas, ondas de calor e de frio muito acima do até aqui conhecido, derretimento de geleiras, etc, veremos que as consequências do desequilíbrio ambiental não pertencem a um futuro distante e incerto. Já chegaram. E naturalmente, e como sempre, quem mais sofre as consequências, são as populações mais vulneráveis. Mas não somente. Todos sofremos.
A pergunta que não quer calar é : permitiremos que esse processo siga adiante com suas consequências desastrosas? A Floresta Amazônica com suas árvores centenárias em pé tem uma função ambiental primordial para toda a humanidade, todo o planeta. A quem interessa destruí-la ? A quem interessa que suas árvores sejam vendidas? Quem ganha com a comercialização das árvores nativas? Quem perde? A resposta parece óbvia …
É urgente portanto que tomemos uma atitude para evitar que a Floresta Amazônica tenha o mesmo destino da Mata Atlântica. E, sendo a Amazônia de importância estratégica para todo o planeta, desnecessário dizer que essa é uma tarefa que deveria interessar a todos – cada qual dentro de suas atribuições e possibilidades.
Ao Brasil , que tem a soberania sobre a Amazônia Brasileira, cabe proteger seu bioma amazônico proibindo a extração e comercialização da madeira nativa – a menos em situações muito específicas de interesse público, à semelhança do que foi feito na Lei da Mata Atlântica.
Se ao Brasil cabe, em sua legislação própria, impedir a derrubada da floresta e a comercialização de suas árvores, a comunidade internacional também precisa fazer a sua parte, decretando a moratória da importação da madeira nativa.
Em visita recente ao Brasil – e à Amazônia – , uma comissão da bancada ambientalista do Parlamento Europeu parece ter chegado a conclusão semelhante, compreendendo a necessidade de se agir rapidamente em face à velocidade do processo de destruição, e percebendo a importância de, dentro de suas atribuições legais, a União Europeia colaborar para estancar o rápido processo de devastação da Floresta Amazônica. Afinal, não há como negar que ao importar a madeira nativa brasileira ( lembrando sempre que a madeira nobre vem de árvores por vezes seculares , impossíveis de serem replantadas e substituídas a médio prazo) a Europa contribui para a destruição da maior floresta tropical do planeta com suas já conhecidas consequências.
Tal responsabilidade, naturalmente, não se restringe à Europa, sendo China e Estados Unidos igualmente grandes cúmplices nesse processo .
A eles, governantes e legisladores brasileiros e estrangeiros, cabe repensar o seu papel no processo de destruição da floresta amazônica. Não é inteligente concentrar esforços e verbas de fundos milionários em projetos de reflorestamento ( embora esses sejam indispensáveis também) , e seguir permitindo a derrubada e comercialização de nossa floresta, comprometendo definitivamente toda sua biodiversidade e afetando dramaticamente o equilíbrio ambiental.
A nós, sociedade civil, cabe fazer uma profunda reflexão a respeito da utilização de madeiras nobres em nosso dia a dia. O que hoje compramos como belas mesas, armários, cadeiras, assoalhos, um dia foi uma árvore talvez secular na Mata Atlântica ou na Floresta Amazônica .
Será que não teríamos opções mais sustentáveis para nossos anseios e necessidades? E quais são as necessidades do planeta? Será que ele pode prescindir de suas florestas? Qual o preço que todos pagaremos? A pensar …
* Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Cristina Saraiva é compositora e ativista cultural.