Lembro de uma palestra do professor da UFMG Carlos Ranulfo, ainda em 2016, na qual ele previa uma enorme instabilidade futura no sistema político brasileiro. Recordo-me que ele, ao final, em seu modo polido e contido, quase se apiedava de quem tivesse que conduzir o problema.
De lá pra cá o que se viu foi o tremendo acerto da análise do professor Ranulfo, acrescentando apenas que a piedade deveria se estender a uma imensa maioria de nós brasileiros que estamos sofrendo as agruras de um sistema político altamente instável.
A instabilidade vai desde a superficial e passageira até aquela das estruturas. Vamos dar uma rápida olhada por algumas delas.
A sessão do Congresso que promulgou a PEC dos Precatórios foi um exemplo claro.
Primeiro, o Congresso avança no cada vez mais mambembe processo de “promulgação fatiada”. Promulgação fatiada foi o termo coloquial que se criou para expressar como uma tramitação que deveria ser padrão-ouro, pois se trata de mudar a lei maior do país, tornou-se um apanhado de conveniências e casuísmos.
Lá em 1988 esperava-se que para ser promulgada uma PEC tivesse que ser apreciada na Câmara e no Senado, que em cada uma delas passasse por comissões com tempo suficiente para debatê-las e avaliar seus efeitos, e depois cada Plenário, em duas sessões distintas, deveria aprová-las por três quintos dos votos. O texto deveria ser exatamente igual em ambas as casas.
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A promulgação fatiada é o desmonte de um quebra-cabeças em que se pescam as partes que ambas as casas concordam e se promulga. O que não se promulga é resto, fica para depois. O absurdo da coisa é que uma proposta que tem inteireza, que deveria ser orgânica, é desossada e promulgada.
O senador Rodrigo Pacheco, na sessão de promulgação, teve que discutir com outros senadores em plenário e, pasmemo-nos, naquilo que seria apenas cerimonial alterou-se o próprio conjunto de dispositivos promulgados. O velho dito de Bismarck, que não deveríamos saber como são feitas as salsichas e as leis, talvez nunca se mostrou num exemplo mais claro.
Outros elementos de instabilidade são os partidos políticos, mais exatamente seu número.
Um sistema decisório precisa de fases de filtragem. Em outros termos, até que “altas decisões” sejam tomadas, várias instâncias precisam aglutinar posições em torno de consensos parciais. Cada consenso desses vai subindo a hierarquia até que as “grandes decisões” sejam tomadas.
Nosso sistema partidário, com mais de 20 agremiações, filtra muito pouco. As decisões do Congresso passam a sofrer mais instabilidade. Daí não surpreende que as emendas de relator importem tanto hoje. Elas cimentam as negociações que não ocorreriam baseadas apenas no debate de ideias e projetos. Suprimem-se divergências na base das compensações paralelas, algo dito em termos eufêmicos.
Outra fonte de instabilidade é o vulcão STF. Em seu bom livro A batalha dos Poderes, o professor Oscar Vilhena Vieira mostra como há dois parâmetros de contenção no mundo jurídico-político: as leis positivas e as normas de comportamento compartilhadas entre os agentes. Nos últimos anos a profusão de questões sensíveis e a politização e o ativismo dos ministros do Supremo tornaram-se tão grandes que as normas de comportamento tiveram seus limites cada vez mais esgarçados. Em vários casos, podemos lembrar do esdrúxulo inquérito das fake News, a própria legalidade foi posta à prova. Quem deveria serenar espíritos e assentar decisões, hoje também produz mais instabilidade no sistema.
Quanto ao presidente da República, já se consolidou o entendimento que seu modo de governar consiste em confundir e desnortear as instituições. Os estragos que tem causado levantando problemas inexistentes, celeumas autoalimentadas e convocações populares casuísticas é enorme. A novidade é compreender que hoje a instabilidade que vem do Planalto é importante, mas é apenas mais uma delas, não a única.
Por fim, a sociedade após 2013 encontra-se machucada, reativa, de olho ruim para tudo que vê. Como uma ferida exposta e inflamada, a tudo reage com dor incômoda, desconforto, repulsa. Vamos desde os desentendimentos políticos nas ruas até os recônditos da família, em que laços se desfazem por questões que há dez anos não fariam o mínimo sentido. E o mais grave, parece-nos, é que todo esse mal-estar provoca apenas afastamento dos processos que poderiam de fato “melhorar as coisas”, basicamente uma melhor compreensão da política e uma atuação mais responsável e solidária.
Infelizmente o professor Ranulfo acertou. Cumpriu bem o seu papel de analista político, embora a conclusão não fosse boa. A pergunta que devemos fazer agora é se tal instabilidade vai se manter assim tão alta ou se há elementos que a arrefeçam. E também o que devemos, nós, fazer.
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