Marcus Vinicius de Azevedo Braga e Sandro Zachariades Sabença *
Na construção do processo democrático brasileiro, a entrega, o resultado mais visível no campo das políticas públicas, sempre teve espaço de destaque na agenda eleitoral. O simbólico corte da fita quando da inauguração de obras públicas, e todo um rito que caracteriza classicamente a accountability eleitoral como mecanismo de incentivo ao melhor desempenho dos governantes, e – consequentemente – como parâmetro de avaliação dos governantes pelos eleitores, é a base dos processos eleitorais, principalmente nos municípios. Não à toa, concentram-se historicamente as entregas no ano final dos mandatos.
Com a ascensão da agenda anticorrupção no mundo e no Brasil, no início do século 21, outra dimensão que correlaciona as políticas públicas com o processo eleitoral se fez presente: a dimensão da integridade. O uso do “rouba, mas faz”, expressão folclórica que há décadas está presente nos acalorados debates que antecedem as eleições, acabou perdendo espaço; ganhou vez a discussão sobre a probidade do agente, suas relações com outros atores, públicos e privados, e sobre os mecanismos de garantia da integridade na execução das políticas prometidas, trazendo para o processo eleitoral verdadeiros tribunais morais, que demonstram grande força na indução da escolha dos cidadãos.
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A dimensão da integridade, em pleno processo de conformação, passou a acomodar, recentemente, aspectos da agenda ESG (Environmental, Social and Governance), que tem se espraiado pelos discursos dos governantes e dos candidatos, com compromissos sociais e ambientais mesclados com as habituais promessas de entregas, embora ainda pareça acanhado o impacto desse arco amplo de iniciativas nas urnas.
O século 21 trouxe, além da discussão sobre a entrega das políticas públicas e sobre a integridade dos agentes que as conduzem, uma outra dimensão da relação das políticas com os processos eleitorais: a teoria. Na ciência das políticas públicas, a teoria do programa pode ser entendida, em apertadíssima síntese, como o conjunto de pressupostos, a visão de mundo que suporta o programa, que indicam ações e soluções para a resolução dos problemas apresentados pela agenda.
Assim, a título de exemplo, para o problema da pobreza extrema, fenômeno de natureza estrutural, sugere-se a adoção de programas de transferência de renda com condicionalidades, como ação destinada à sua mitigação/solução, entendido por uma determinada visão de mundo na qual a pobreza não pode ser atribuída apenas a responsabilidade individual de cada cidadão e de que a desigualdade é um problema coletivo, que precisa ser combatido.
Para cada problema que ingressa na agenda pelo processo eleitoral, candidatos tradicionalmente apresentam propostas, fundamentadas em suas visões de mundo, para serem debatidas, com a sugestão de ações governamentais (políticas públicas), com o objetivo de solucioná-los. O processo eleitoral sempre foi o palco de ideias inovadoras frente aos problemas, mediando divergências de visões e construindo consensos, que resultam em ações práticas.
Emergiu, entretanto, com mais força nesse período recente, o fenômeno da pós-verdade, caracterizado pela substituição da verdade dos fatos por versões que recorrem ao apelo emocional e às crenças pessoais, induzido pela hiperconectividade e pelas redes sociais, trazendo a reboque uma consequente simplificação de fenômenos complexos e, também, das suas soluções, em debates acalorados cujo propósito é a dissolução de qualquer consenso, dado que a descrença é absoluta.
Observa-se ainda, nesse contexto, um descolamento dos aspectos resolutivos das promessas, um verdadeiro afastamento da eleição em relação ao mundo real, reduzindo as discussões eleitorais em debates que, quando endereçam soluções para eventuais problemas, apresentam propostas visivelmente inviáveis, pouco razoáveis, e que – por vezes – rompem com direitos estabelecidos, e com a própria gênese da ideia de democracia.
Para todo problema complexo existe um sem número de soluções fáceis e erradas, já diz o adágio; e pululam essas soluções enviesadas e impossíveis alimentadas por um caldeirão de revolta e desconfiança na política, distorcendo discussões eleitorais mais robustas sobre entregas e integridade, e engolindo a pauta, em um movimento de desmerecimento de ações consensuadas (e de sucesso no mundo concreto), descolando discurso e realidade.
Um cenário no qual o debate eleitoral abandona a capacidade de conduzir políticas públicas frente aos anseios da população, por ceder espaço para estratégias de comunicação de traço mais niilista, enfraquecendo o próprio processo eleitoral como instrumento de mediação de vontades e forças, um traço indelével da democracia; e o grande confronto de ideias periódico promovido pelas eleições passa a tratar de questões segmentadas ao extremo, tirando o foco do que importa realmente, em especial para quem depende de forma mais aguda do sucesso das políticas públicas para o seu bem-estar.
O fenômeno da hegemonização da dimensão discursiva no processo eleitoral, e do ocaso de aspectos mais concretos, é um desafio para movimentos sociais, partidos políticos, imprensa, academia e para as burocracias estatais. A subversão dos ideais democráticos, da racionalidade dos debates e das escolhas, já apresenta, em algumas situações isoladas, prejuízos concretos para o cidadão, e em alguns casos, como na política social, efeitos intergeracionais negativos.
No campo das políticas públicas, o desafio também está presente. O fantasma da descontinuidade por perda de legitimidade, os efeitos da ausência de um debate público avaliativo, a dissociação das evidências dos resultados, e um crescente movimento que repele iniciativas estatais, termina por minar as políticas existentes, enfraquecendo estruturas já consolidadas, o que acaba impactando diretamente no remédio, no banco escolar e no prato de comida.
Essa falta generalizada de consensos conduz a um cenário no qual nos restam mais dúvidas do que certezas, e o potencial construtor e reconstrutor das eleições se enfraquece sobremaneira. Entramos em mais um ano eleitoral, e deixa-se uma pergunta para reflexão: com o processo eleitoral influenciado pelo fenômeno da pós-verdade, em que pouco importa a razoabilidade e racionalidade das propostas políticas colocadas à mesa, quais seriam os incentivos para que os governantes escolham políticas públicas voltadas para entregas efetivas e norteadas pela integridade? Uma pergunta para a nossa geração, que terá efeitos nas próximas.
* Marcus Vinicius de Azevedo Braga é doutor em Políticas Públicas (PPED/IE/UFRJ) e Sandro Zachariades Sabença é mestre em Direito da Regulação (FGV/Direito Rio)
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