por Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek*
A noite do dia 13 de novembro de 2024 trouxe a baila a rediviva e excruciante experiência de 8 de janeiro de 2023, episódio que ficou conhecido como “Capitólio Brasileiro”. Um brasileiro atentou contra o STF, morrendo em seguida. Cabe ressaltar a evolução do primeiro atentado para o segundo na Praça dos Três Poderes: o ataque agora se deu com os alvos presentes em seu local de trabalho.
Preocupa a ação individual, pois mostra, por exemplo, que se houvesse um cabo ajudando aquele soldado do caos que não está mais entre nós, talvez o atentado lograsse algum êxito.
Não se trata, por certo de atentado operado por um maluco. Há planejamento, paciência, patenteadas até pela indumentária escolhida a dedo. O Coringa brasileiro, mesmo que sem o mesmo brilhantismo do das telas de cinema.
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Estamos falando, portanto, de alguém mau ou que se deixou dominar pelo mal. Não podemos nos esquecer da fragilidade formativa que o morto possuía, o que certamente facilitou sua captura pelo nefasto ideário da extrema-direita. E devemos lembrar que é preciso auditar a origem dos recursos que ele recebeu, pois os gastos não foram poucos.
Isto posto, como classificar sua morte?
Em primeiro lugar, conquanto ele tenha atentado contra a própria vida, cuja filmagem é por demais chocante, qualificar sua morte como suicídio nivela o homem-bomba do STF a um doente mental. Não que ele não estivesse com algum sofrimento psíquico. A captura pelo fascismo adoece até o mais são. Mas suicídio, ainda que possa ter algum planejamento, na esmagadora maioria dos casos não é de longo prazo. Tampouco o suicida se preocupa em realizá-lo em espaços simbolicamente políticos. Conquanto tenha se matado, não se trata de suicídio.
Quanto ao martírio, não parece ter sido o caso. Isto porque mártir é categoria de quem foi morto por uma causa, por uma crença. Estevão, o diácono da Igreja primeira que segundo Atos capítulo 7 foi morto sob o consentimento de Saulo/Paulo, é tido como o primeiro mártir da Igreja, pois foi apedrejado até a morte por conta de sua fé. Martin Luther King Jr., pastor batista, foi morto por conta da causa que defendia, a saber, a igualdade racial e de direitos civis no contexto estadunidense, especialmente nos Estados do Sul daquele país.
Para ser mártir é preciso ter uma causa e ser morto por ela. Ainda que o nosso personagem julgasse ter uma causa, ele não foi morto por ela. Martírio definitivamente não qualifica o que aconteceu, ainda que os simpatizantes do delírio produzido por esta “dissonância cognitiva coletiva”, como bem nos lembra o professor João Cezar de Castro Rocha, possam assim interpretar tal ato.
Restou-nos o sacrifício. E aqui recorro ao professor Leandro Seawright (UFGD) que nos lembra que o sacrifício, modalidade presente e valorado em sistemas religiosos, abrange a auto-imolação. É uma espécie de transposição de faixa, de galgar um novo patamar, de ter seu valor finalmente reconhecido pelos membros de uma seita, mesmo que a pessoa não esteja mais aqui para notar, ou usufruir, essa valoração.
É na valorização do caráter sacrificial presente na seita que reside o maior perigo do ato. Podemos estar diante não de um caso, mas do primeiro caso. O professor João Cezar (UERJ) já tinha aventado uma trilha para atos de terrorismo doméstico: a frustração coletiva diante das promessas não cumpridas (pelos agentes do bolsonarismo).
O sacrifício, a auto-imolação, prescinde da razão. Pode soar como um contrassenso que algo planejado prescinda da razão. Entretanto, isto ocorre pela dimensão operativa do ato, de seu aspecto religioso e do contorno de absoluta desconexão da realidade que assume. É um ato de fé, ainda que não se saiba “fé em quê”. A gravidade disso reside no evidente descontrole social que pode redundar, em algum momento, na trágica consecução do objetivo, da marca do ódio que parece alimentar grupos bolsonaristas: a morte do Ministro Alexandre de Moraes.
Podemos estar diante de um trágico portal que se abriu na noite deste último 13 de novembro. A chegada de Pablo Marçal mostrou que nem Bolsonaro, nem os pastores que o apoiaram, têm controle sobre os que foram radicalizados. Eis o maior transtorno: uma vez acionado o processo de radicalização ele pode até ter um final (como na morte do “Tiu França“), contudo não tem fim. E sempre aparecerá um radical para contestar e apontar a insuficiente radicalidade dos demais participantes desse movimento de extrema direita.
Uma fronteira foi ultrapassada. Agora é torcer para que fique individualizada neste ato. Se não sabemos qual foi a participação da coletividade no ato terrorista de 13 de novembro (houve financiamento? Houve algum apoio de políticos bolsonaristas?), que nossa democracia seja preservada de testemunhar outros indivíduos se imolando por conta de um falso messias (que sempre busca livrar seu pescoço e dos filhos, ao invés de se doar pela causa que abraça, mas que não sustenta (na verdade é sustentado)) e de seu ideário extremista.
E que os enlutados por tal acontecimento na noite de 13 de novembro último recebam o conforto divino.
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* Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é mestre e doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG) e pastor na Igreja Batista Marapendi, no Rio de Janeiro.
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