Marcelo Zero e Wilmar Lacerda
O que aconteceu no dia 8 de janeiro em Brasília foi a crônica trágica de um assalto anunciado à democracia.
Todos sabíamos que o bolsonarismo, uma forma de neofascismo tupiniquim, tentaria emular o que Trump havia feito na famigerada “invasão do Capitólio”, ocorrida dois anos antes. Afinal, os bolsonaristas seguem a agenda preconizada pela extrema-direita mundial e norte-americana, liderada, entre outros, por Steve Bannon.
O terreno para esse assalto não vinha sendo preparado há apenas algumas semanas. Vinha sendo preparado há anos e foi precedido por outras tentativas.
Desde o golpe de 2016, que a democracia brasileira estava sendo fragilizada. Foi esse golpe, combinado com a Lava Jato, que conduziu, em última instância, Jair Bolsonaro ao poder, um notório defensor da ditadura e da tortura.
De fato, naquela época insuflaram as forças mais retrógadas do Brasil para dar um golpe contra a presidenta honesta e colocar no poder a “turma da sangria”. Saíram às ruas junto com Bolsonaro, MBL e outros grupos protofascistas, que pediam intervenção militar e condenavam a democracia e a política de um modo geral.
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Chocaram o ovo da serpente que injetaria veneno mortal em nossas instituições democráticas e na mente de parte da nossa população. Criaram a antipolítica, a antessala histórica do fascismo.
Felizmente, o grande assalto à democracia, gestado pelas fake news e pelo ódio, falhou miseravelmente. As instituições democráticas, já sob o manto protetor da frente democrática unida em torno do presidente Lula, reagiram em forte tom uníssono.
Os golpistas ficaram totalmente isolados e mereceram o justo repúdio nacional e mundial. Não foi um simples tiro no pé. Foi uma verdadeira bomba atômica no pé.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) já se movimenta para realizar reunião de emergência sobre os atos terroristas ocorridos no Brasil. Circula uma ideia de aliança entre vários países da Américas para frear a possibilidade de golpes na região. O Brasil deve apresentar suas experiências de como tem agido para lidar com os golpistas. Como resposta ao vandalismo, o presidente Lula decretou intervenção na segurança do Governo do Distrito Federal e determinou a apuração sobre a organização e o planejamento dos atos na busca de quem está financiando os movimentos terroristas, usando pessoas comuns como “massa de manobra” por meio de manipulação de informação e disseminação de ideais fascistas.
Em uma convocação histórica, Lula reuniu 27 governadores, inclusive de oposição, Presidentes da Câmara e do Senado e ministros do Supremo Tribunal Federal para demonstrar união em defesa do Estado Democrático de Direito no Brasil e unificar as ações que a legislação prevê como reação aos ataques à democracia, às instituições e à sociedade brasileira.
Agora, cumpre punir os culpados dessa imensa vergonha internacional. Não somente os idiotas úteis que formaram a massa de manobra que invadiu, depredou, vandalizou e emporcalhou as sedes dos três poderes, mas, sobretudo, os mandantes da horda antidemocrática, aqueles que organizaram e financiaram o grande assalto à democracia. E também as autoridades que, por ação ou omissão, contribuíram decisivamente para a tentativa canhestra de golpe.
Muito provavelmente, as investigações chegarão até a Flórida, onde o principal responsável político pelo descalabro, viu, como Nero, a vil fogueira da tirania tentar queimar nossa frágil democracia.
Não se trata de revanche política ou vingança. Trata-se de justiça, única forma legítima de defesa da democracia. Para que o Brasil se una e se pacifique, é necessário que o império da lei se imponha, assegurando o amplo e irrestrito direito à defesa e a proteção aos demais direitos fundamentais. Não podemos repetir o erro fatal da República de Weimar, que não soube se defender do nazismo e que acabou acolhendo Hitler, o líder que a golpeou de morte.
Afinal, é necessário que se entenda que a democracia, desta vez, ganhou a batalha. Mas a guerra pela democracia ainda não foi ganha.
As democracias brasileira e mundial continuam ameaçadas.
Essa ameaça provém, essencialmente, de dois fenômenos interrelacionados: a eclosão do chamado “populismo de direita”, ou, mais precisamente, do neofascismo, e a deterioração do tecido social causada pelo neoliberalismo.
Como bem observou Michelle Bachelet, em um discurso de agosto do ano passado, quando ainda era a Alta Comissária das Nações Unidas Para os Direitos Humanos::
“A democracia está enfraquecida.
Em 2021, o nível de democracia que a pessoa média no mundo poderia desfrutar foi reduzido aos níveis de 1981. Isso significa que os ganhos democráticos alcançados nos últimos 30 anos foram reduzidos, em sua maior parte. No ano passado, quase um terço da população mundial vivia sob regimes autoritários. Além disso, o número de países que estão caminhando para o autoritarismo é três vezes maior do que o número de países que estão caminhando para a democracia.
O declínio da democracia é especialmente evidente na Ásia Central, Europa Oriental e Ásia-Pacífico, bem como em partes da América Latina e do Caribe, conforme refletido em vários ataques ao estado de direito. Como exemplo, em alguns países da América Latina e do Caribe observamos ataques contra órgãos de gestão eleitoral, contra tribunais constitucionais, contra a mídia e instituições nacionais de direitos humanos…
Ademais, a confiança nas instituições está desaparecendo. As pessoas se sentem ignoradas, como se a democracia não tivesse cumprido plenamente o que prometeu. As desigualdades estão aumentando à medida que mulheres, minorias, idosos e outros que foram tradicionalmente marginalizados são empurrados para trás. Essas exclusões alimentam a desconfiança e o ceticismo contra as instituições.”
Este texto de Michelle Bachelet resume bem a questão.
O esgarçamento do tecido social causado pelo neoliberalismo, que destrói o Estado do Bem-Estar e aumenta a exclusão econômica e as desigualdades sociais, provoca um profundo desalento social e uma desconfiança política nas instituições democráticas, que passam a ser vistas como “inúteis” e como instâncias que só servem aos poderosos e aos “corruptos”. É isso que cria o “caldo de cultura” (seria melhor dizer de “anticultura”), no qual as bactérias pútridas do neofascismo se nutrem. O discurso “anti establishment” tornou-se monopólio da extrema-direita.
Assim, não é segredo para ninguém que há uma crise geral das democracias e dos sistemas de representação política, fortemente golpeados pelas desigualdades ocasionadas pelas políticas neoliberais. Como fica evidente em obras como a de Piketty, o padrão de acumulação capitalista do século XXI parece cada vez mais incompatível com a democracia.
Por conseguinte, a “guerra” pela democracia impõe uma luta em duas grandes frentes.
A primeira é a luta na frente política, ideológica e comunicacional.
É necessário isolar politicamente os autoritários e golpistas e desconstruir seus discursos e sua hegemonia ideológica em todos os segmentos sociais.
No Brasil, a primeira tarefa nessa frente, o isolamento político, já está sendo efetivada. Contudo, é preciso desconstruir as estruturas ideológicas e comunicacionais que cevam o neofascismo e seu discurso de ódio. Para tanto, será imprescindível, entre outras coisas, enfrentar as redes digitais neofascistas que difundem diuturnamente fake news abundantes e um espesso ódio infundado contra nossas instituições democráticas.
Não se trata de amordaçar ninguém, mas de combater grosseiras ilegalidades e ameaças concretas contra nossa democracia. Como disse o presidente Lula, usaremos as armas da verdade, que se sobrepõe à mentira; da esperança, que venceu o medo; e do amor, que derrotou o ódio.
Já a segunda grande frente de luta é a frente social e econômica.
Nesse caso, o objetivo maior é enfrentar as causas últimas da antidemocracia.
Com tal objetivo, é imprescindível que o Brasil volte a crescer distribuindo renda e patrimônio, criando empregos decentes e assegurando saúde, educação e moradia para todos. Afinal, não há democracias substantivas no mundo sem uma classe média robusta, sem uma classe trabalhadora organizada e sem um Estado de Bem-Estar minimamente consolidado. As chamadas liberdades civis e políticas fundam as democracias, mas elas só se aprofundam e se consolidam, no contexto da afirmação de direitos sociais e econômicos amplos, que asseguram, na prática, a fruição das liberdades e direitos básicos.
Antes de tudo, é fundamental que a esperança não seja defraudada.
Lula não subiu a rampa do Planalto sozinho.
Com ele, subiu a mãe desesperada que não consegue alimentar seus filhos.
Com ele, subiram 33 milhões de famintos.
Com ele, subiram quase 10 milhões de desempregados.
Com Lula, subiram a rampa os pretos do Brasil, vítimas de um profundo racismo estrutural, e os jovens afrodescendentes que são assassinados todo os dias nas periferias das grandes cidades.
Com Lula, subiram a rampa as mulheres brasileiras, que ganham menos que os homens nas mesmas funções, e as vítimas de cruéis feminicídios.
Com Lula, subiram a rampa os povos originários, historicamente submetidos a toda sorte de violação de direitos.
Com ele, subiram os parentes, os amigos e os órfãos das 700 mil vítimas de Covid-19; as vidas ceifadas num genocídio.
Com Lula, subiram a rampa do Poder os sonhos e as esperanças de todas e de todos. Dos que votaram nele e dos que nele não votaram.
Esses sonhos e essas esperanças terão de ser o cimento que construirá a base de uma democracia sólida, estável e substantiva.
Se a democracia quiser ser para sempre, a esperança tem de ser agora. A democracia vencerá.
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