Fernando Real *
Numa manhã de quarta-feira, Eva (nome fictício), moradora do subúrbio do Rio de Janeiro, estava hesitante se tomaria a vacina contra a covid-19, prevista naquele dia para mulheres na sua idade, 62 anos. Sua hesitação não era nenhum afã antivacina. Sua preocupação era genuína: acostumada a sempre ouvir falar da vacina CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac, havia descoberto que a dose a ela reservada era da vacina Oxford-AstraZeneca, também conhecida por Covishield ou Vaxzevria, produzida no Brasil pela Fiocruz. Ela lembrava de ter ouvido nos noticiários sobre casos fatais ocorridos na Europa, decorrentes da administração desse imunizante, e estava em dúvida se cumpriria o calendário vacinal utilizando a dose disponível para ela ou se esperaria a oportunidade para tomar alguma outra. Sua decisão envolve uma cuidadosa reflexão sobre risco-benefício. Mas que não cabe só a ela.
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Recentemente, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, algo como a Anvisa da Europa) identificou que a vacina Oxford-AstraZeneca pode, em casos extremamente raros, causar uma reação adversa grave e muitas vezes fatal caracterizada pela combinação sinistra de queda abrupta do número de plaquetas no sangue (trombocitopenia) e de formação de coágulos sanguíneos generalizados1. Trata-se de um tipo muito raro e específico de trombose – diferente dos casos de trombose mais comumente observados (por exemplo, como efeito colateral de anticoncepcionais). Desse quadro podem resultar as fatais tromboses venosas cerebral e esplâncnica (abdominal).
O aparecimento de casos fatais de trombose com trombocitopenia em dezenas de pessoas jovens e saudáveis, sem antecedentes médicos importantes, na maioria mulheres, nos 20 dias que se seguiram à primeira dose da vacina sueco-britânica, acendeu um alerta de reação adversa grave em diversos países do velho continente. Inicialmente, em março de 2021, houve uma interrupção completa da administração por uma a duas semanas, a depender do país europeu. Em abril, a EMA confirmou a associação entre a vacina Oxford-AstraZeneca e casos de trombose cerebral em indivíduos abaixo dos 60 anos, entre sete e 20 dias após a primeira dose.
Acima dessa faixa etária, os casos dessa trombose fatal foram observados na mesma incidência, e no mesmo intervalo de tempo, entre vacinados e não-vacinados, descartando qualquer relação direta com o imunizante. Analisando o risco de trombose cerebral pela vacina (maior nos mais jovens) e o risco de internação por covid-19 (maior nos mais velhos), imediatamente muitos países retomaram a administração da Vaxzevria estabelecendo seus próprios limites de idade para a aplicação da vacina, ainda sem um consenso.
Grande parte das agências reguladoras vetou sua aplicação em menores de 60 anos, assumindo que o benefício da proteção contra a covid-19, num grupo de risco relativamente mais baixo de hospitalização pela doença, não compensaria os possíveis riscos do efeito adverso grave da vacina. O Reino Unido, por exemplo, proibiu o imunizante para indivíduos abaixo dos 30 anos. Os exemplos europeus necessitam de reflexão mais profunda em nosso país pela comunidade científica e os órgãos reguladores.
PublicidadeSegundo dados do Winton Centre for Risk and Evidence Communication, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), o risco de efeitos adversos graves decorrentes da dose da Oxford-AstraZeneca é de um caso grave a cada 100 mil vacinados entre 20 e 29 anos. Isso é como um torcedor no meio de um Maracanã lotado. Na faixa etária de Eva, moradora do subúrbio do Rio de Janeiro, 62 anos, o risco cai para um caso grave a cada 500 mil vacinados entre 60 e 69 anos2 – imagine o mesmo único torcedor no meio de cinco Maracanãs lotados.
Aplicando a mesma análise de risco feita pelos matemáticos de Cambridge para a realidade de nossa personagem, quando Eva tem diante de si a chance de tomar o imunizante da Oxford-AstraZeneca, ela é confrontada com dois possíveis cenários de risco nos próximos 20 dias.
Primeiro, ela precisa considerar o risco de ser o único caso em cada 500 mil vacinados na sua idade a apresentar uma reação grave à vacina. É o torcedor solitário diante de cinco Maracanãs lotados. Por comparação, num período de 20 dias, há mais chances de Eva ser vítima fatal da violência no Rio de Janeiro – algo em torno de uma vítima a cada 80 mil habitantes da capital carioca3 – do que sofrer efeitos colaterais graves decorrentes da Vaxzevria.
Por outro lado, ela precisa encarar o vírus que circula por aí, num Brasil em pleno pico de uma segunda onda de covid-19 atingindo mais de 3 mil mortos ao dia. Um cenário claro de alto risco de exposição, no qual a chance de hospitalização por covid-19 entre pessoas na faixa etária de Eva (acima dos 55 anos) é estimada em uma para cada 300 indivíduos4. Ou seja, há mil vezes mais chances de Eva dar entrada num hospital por covid-19 se não for vacinada do que sofrer um efeito colateral grave da Oxford-AstraZeneca nos 20 dias que ela tem pela frente caso decida tomar a vacina. Considerando a variante brasileira que circula em nosso país, não seria de surpreender que o risco de hospitalização por covid-19 e os benefícios de ser imunizada pela Vaxzevria sejam ambos ainda maiores.
Na Europa, a Oxford-AstraZeneca foi administrada massivamente em fevereiro nos grupos prioritários na época (pessoas acima de 75 anos, de acordo com o calendário de vacinação francês), mas também em médicos, enfermeiros e laboratoristas de todas as idades. Na França, chegou a superar o número de doses da vacina Comirnaty, produzida pela gigante americana Pfizer em conjunto com a alemã BioNTech, e se tornar o imunizante mais administrado naquele mês. Era a vacina preferencial para as pessoas abaixo de 75 anos que precisavam se proteger, deixando a da Pfizer para os mais velhos. Hoje na França, a Oxford-AstraZeneca, reservada para aqueles acima de 55, vem sendo rejeitada pela população. Mas mesmo antes de os casos de trombose cerebral serem reportados e prejudicarem a imagem da vacina frente à opinião pública, muitos profissionais de saúde franceses já vinham recusando a Oxford-AstraZeneca e exigindo a vacina da Pfizer – em parte guiados pelos estudos que demonstram possível maior eficácia dessa última no combate ao vírus SARS-CoV-2, causador da covid-19. Em fevereiro, doses de Oxford-AstraZeneca estavam sobrando nos hospitais franceses. O primeiro-ministro francês e autoridades de outros países europeus tomaram o imunizante sueco-britânico no intuito de estimular e encorajar seu uso.
Legítimo se perguntar: se há uma vacina aparentemente mais segura e mais eficaz, por que insistir no uso da Oxford-AstraZeneca? Por que não banir de vez essa vacina, como acaba de fazer a Dinamarca? Responder essa pergunta envolve a mesma análise dos riscos feita por Eva, mas em escala global. Não podemos esperar que a vacina da Pfizer esteja disponível para todos, num panorama de escassez de vacinas, atraso no calendário vacinal e contágio desenfreado. Vacinamos em caráter emergencial pela urgência e pela calamidade global que a pandemia nos impõe. Esse caráter emergencial envolve riscos desconhecidos que serão revelados conforme as vacinas são administradas aos milhões, para além dos 10 mil ou 20 mil indivíduos implicados nos testes de vacina que demonstraram sua eficácia. Envolve evidentemente o uso massivo de vacinas consideradas menos eficazes, como a CoronaVac, na falta de opções teoricamente melhores.
Vacinação é antes de tudo um pacto social no qual, mesmo que infelizmente algumas vacinas falhem na proteção ou na sua segurança para um grupo raro de pessoas, atuamos coletivamente para nos protegermos de forma mútua. A EMA, corretamente, enfatiza aos reguladores europeus que os benefícios da Oxford-AstraZeneca superam muitíssimo seus riscos. Além disso, diferentes agências regulatórias já possuem protocolos sobre as possíveis maneiras de detectar e tratar os efeitos adversos graves relatados após o uso dessa vacina de maneira eficaz5.
Às 12 horas daquela mesma quarta-feira, Eva decidiu tomar a vacina da Oxford-AstraZeneca. E assim fez tendo plena consciência dos seus riscos e benefícios: seria muito mais arriscado padecer de covid-19 esperando pela dose de outra vacina do que sofrer um efeito colateral grave decorrente desse imunizante. Antes de sonharmos com vacinas infalíveis, é preciso entender a calamidade brasileira frente à covid-19 e a urgência de protegermos o maior número de pessoas no menor intervalo de tempo possível com as vacinas que estão à nossa disposição hoje. É como deve ser feito numa campanha de vacinação emergencial, sem ilusões e poções mágicas.
* Fernando Real é doutor pela Universidade Federal de São Paulo, livre-docente pela Universidade de Paris e pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) da França. Contribuíram para este artigo: Dr. Vinicius Ribas, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e Dr. Billy Nascimento, professor da ESPM e CEO da Forebrain. O autor e colaboradores declaram não haver conflito de interesses para a publicação deste texto.
3http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf. Estimativa bruta: 1.420 mortes violentas (letalidade violenta) na capital do Rio de Janeiro no ano de 2020, algo em torno de 78 mortes a cada 20 dias. Para uma população na capital de 6,7 milhões de habitantes, o risco de letalidade violenta em 20 dias na capital é algo em torno uma vitima a cada 85 mil habitantes.
4https://www.england.nhs.uk/statistics/statistical-work-areas/covid-19-hospital-activity/. A estimativa se baseia na população da Inglaterra acima de 55 anos e nos dados de novas hospitalizações diárias por covid-19 para essa faixa etária num período de 20 dias (10 a 30 de janeiro de 2021, pico da segunda onda na Inglaterra).
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